RedePsi - Psicologia

Colunistas

Enxaquecas e demais cefaléias

Introdução:

Na ausência de um critério fisiopatológico ou etiológico suficientemente preciso, a definição da enxaqueca permanece essencialmente clínica. Trata-se de um tipo muito particular de cefaléia que ocorre por acessos intermitentes entre os quais há períodos livres de dor. A cefaléia é habitual­mente hemicraniana, pulsátil, acompanhada de náuseas e/ou vômitos, muitas vezes precedida de alterações visuais. Assim definida, a enxaqueca é uma afecção freqüente, que acomete pelo menos 10% dos indivíduos na população geral, com uma nítida predominância feminina, sendo a proporção aproximada de 2 : 1 em relação ao homem.

Nota: As algias vasculares da face são semelhantes às enxaquecas, sendo por isso, chamadas “neuralgias faciais tipo enxaqueca” (o termo nevralgia está consagrado popularmente).
1. Diferentes tipos de acessos de enxaqueca

Existem três grandes variedades: enxaqueca oftál­mica, enxaqueca simples e enxaqueca acompanhada. Deve-se acrescentar o problema muito particular de uma quarta variedade de enxaqueca: com sinais neurológicos duradouros.

Enxaqueca oftálmica. É a variedade mais típica, senão a mais freqüen­te do acesso de enxaqueca.

– O início do acesso é freqüentemente anunciado algumas horas ou dias antes por pródromos: alterações digestivas vagas e variáveis; modificações do apetite, habitualmente anorexia, algumas vezes o inverso; modificação do humor, depressão com: sentimento de tristeza, intensa fadiga, uma irritabilidade particular ou, ao contrário, uma excitação psíquica com es­tado de euforia e capacidade de trabalho aumentada (hipomania).

– A primeira fase do acesso é marcada por alterações visuais. O es­cotoma cintilante é o principal aspecto. Um ponto brilhante aparece diante dos olhos, móvel com o olhar; ele se desloca, se estende e logo desenha o limite de um escotoma crescente. Este limite tem a forma de uma linha quebrada, poligonal, em ziguezague; é multicor e brilhante. O seu interior é cinza ou bem colorido e parece freqüentemente agitado por movimentos. O escotoma, assim delimitado, é cego. Ora se estende como uma mancha de óleo, atingindo os limites do campo visual, e desaparece, ora atenuam-se os fenômenos luminosos, deixando uma alteração visual puramente deficitária sob a forma de uma hemianopsia (apagamento de parte, ou metade do campo visual). A hemianopsia constitui o segundo grande tipo de alteração visual da enxaqueca oftálmica. Ela pode tanto ser secundária ao fenômeno cintilante quanto aparecer subitamente. O escotoma cintilante e o déficit do campo visual acometem geralmente os dois olhos, o que indica a sua origem retroquiasmática, provavelmente occipital. Entretanto, em alguns doentes essa alteração parece mais monocular, o que indica uma provável pertur­bação retiniana.

– Normalmente após o desaparecimento das alterações visuais, que apresentam uma duração de alguns minutos a meia hora; surge a fase dolorosa. Entretanto, pode ocorrer que os períodos de alterações visuais prolonguem-se durante a fase de cefalalgia; é possível também ocorrer que os acessos resumam-se a alterações visuais e diminuam, sem surgir a cefaléia. A localização desta cefaléia é freqüentemente unilateral, pre­dominando na região frontorbitária. Ela acomete o hemicrânio contra­-lateral ao campo visual que manifestou o escotoma; entretanto, essa carac­terística não é constante. Por outro lado, a cefaléia pode ser bilateral, en­contrando-se habitualmente, neste caso uma predominância anterior, fron­torbitária; mas ela pode ser também difusa, com predominância posterior e com irradiações cervicais. De um acesso a outro a alteração visual e a cefaléia podem mudar de lado ou, ao contrário, repetir-se com uma notável constância, sempre no mesmo território.

As características da cefaléia da enxaqueca não são menos variáveis que sua localização. O doente a descreve usando diversas imagens: sensação de trituração ou de esmagamento; como se martelassem sua cabeça; como se enfiasse cunhas no crânio; sensação de que sua cabeça vai explodir. A cefaléia é contínua, porém se exacerba por paroxismos que se desenca­deiam à menor impressão sensorial, por exemplo, barulho, luz, movimen­to, ou até pelo fato do doente inclinar-se para a frente, de espirrar ou de tossir. Apesar de seu polimorfismo, é freqüentemente possível reconhecer-­se na dor um caráter pulsátil.

– A dor acompanha-se de sensação geral de mal-estar e de angústia que, após o acesso atingir o seu clímax, determina um estado vertiginoso e nauseoso bastante característico da cefaléia da enxaqueca. Trata-se de um estado análogo aos enjôos no mar. O indivíduo fica pálido, as náuseas provocam vômitos freqüentes, inicialmente alimentares e depois biliosos, que acalmam a dor durante algum tempo; posteriormente ela retorna, aumentando novamente até o próximo vômito. Assim, alternando agravamentos e acalmias relativas, a crise dura em média de 12 a 24 horas. Fenômenos críticos marcam freqüentemente o fim da crise, sendo mais comum a emissão de urina clara e abundante. Freqüentemente a fadiga e o estado de embrutecimento no qual se encontra o doente transformam-se em um sono pesado e reparador que marca o fim do acesso da enxaqueca, sucedendo-se então uma sensação de euforia e de descontração.

Enxaqueca simples. Assemelha-se à enxaqueca oftálmica, sem os sin­tomas visuais. A ausência destes pode tornar o diagnóstico mais duvidoso. A evidência de um caráter intermitente da cefaléia, que sobrevém por crises, constitui ainda um elemento essencial do diagnóstico. A idéia de uma fase prodrômica e de sinais digestivos associados constituem, da mes­ma forma, elementos indicadores. Alguns indivíduos apresentam somente acessos de enxaqueca simples, outros somente de enxaquecas oftálmicas; não é raro que sejam observados estes dois tipos de crises em um mesmo doente, com uma freqüência relativamente variável, segundo os indivíduos e os períodos de existência.

Enxaquecas acompanhadas. Alguns indivíduos apresentam durante os acessos enxaquecosos, ou, ao menos, em alguns deles, alterações neu­rológicas passageiras que, como as crises visuais, surgem durante a fase pré-cefalálgica e desaparecem com o surgimento da cefaléia. As mais freqüentes são as parestesias, que progridem de maneira mais ou menos extensa em um hemicorpo, apresentando freqüentemente uma topografia queiroral. Estas parestesias, que indicam uma alteração funcional do córtex parietal, podem-se assemelhar às alterações somatognósicas às vezes observadas como ilusões relativas à forma, ao volume, peso e posição de segmentos corporais. É também possível observar-se fenômenos afásicos, algumas vezes importantes, outras vezes limitados a alterações agráficas ou aléxicas. Parestesias, alterações da somatognosia e afasia estão geralmente relacionadas a uma perturbação circulatória reversível no território da ar­téria sylvianna. As alterações visuais da enxaqueca oftálmica são atribuídas a uma alteração circulatória na região da artéria cerebral posterior. Criou-se o termo enxaqueca basilar para designar as enxaquecas associadas aos sinais neurológicos que parecem depender de uma perturbação circulatória do sistema vertebrobasilar; é o caso da alteração visual que acomete os dois campos visuais, ou quando as parestesias são bilaterais ou, ainda, quando existem sinais cocleovestibulares (zumbido, vertigem), uma incoordenação cerebelosa, até alterações da vigilância, indicando uma perturbação fun­cional da formação reticular.

Essas enxaquecas acompanhadas podem mostrar um caráter bastante impressionante e inquietante em razão das manifestações neurológicas que apresentam, e que podem desencadear suspeitas de uma neoformação (tumor) ou malformação vascular intracraniana. Entretanto, se o conjunto da história sugere uma natureza enxaquecosa para as alterações, com exame neuro­lógico que não mostra nenhuma alteração permanente e com os exames de rotina (neuroimagens, fundo de olho, EEG) negativos, ratificamos a hipótese diagnóstica primeira, enxaqueca.

Enxaqueca com sinais neurológicos duradouros. Este capítulo agrupa aspectos conflitantes, e o fato de pertencerem ao conjunto da en­xaqueca só é admitido com reservas. Assim são as alterações que persistem no campo visual observadas excepcionalmente durante o acesso de en­xaqueca, para as quais presume-se uma alteração isquêmica particular­mente duradoura e que originam uma lesão. A enxaqueca oftalmoplégica, caracterizada pelo aparecimento durante o acesso de paralisias oculo­motoras mais ou menos complexas, é geralmente atribuída a uma pertur­bação vasomotora do sifão carotídeo que atinge os nervos oculomotores vizinhos.

Na realidade, a natureza enxaquecosa de tais manifestações não pode ser considerada antes que uma neuroimagem tenha permitido des­cartar a hipótese de uma lesão orgânica intracraniana, tumor, infiltração neoplásica ou inflamatória da base, malformação vascular aneurismática ou angiomatosa.

2. Aspectos evolutivos da enxaqueca

A evolução geral da enxaqueca varia de indivíduo para indivíduo, e até em um mesmo doente é comum assistirmos a modificações consideráveis na freqüência, intensidade ou aspecto das crises.

– Comumente os primeiros acessos aparecem durante a adolescência, em torno da puberdade. Não raro são precedidos, na infância, por "equivalentes": vômitos freqüentes, enxaquecas abdominais e enjôos no transporte (cinetose).

– Algumas enxaquecas são benignas, pois os acessos são espaçados, de intensidade moderada, facilmente debelados pelos analgésicos comuns (aspirina, dipirona, paracetamol etc.). Em outros doentes, ou às vezes, até nos mesmos doentes em alguns períodos da vida, a doença apresenta um caráter grave e invalidante em razão da intensidade dos acessos, de sua duração e, sobretudo de sua freqüência muitas vezes subintrante, podendo apresentar um verdadeiro estado de mal de enxaqueca (analogia com o estado de mal epilético).

– O aparecimento de enxaquecas graves ou agravadas secundariamen­te pode ser facilitado por diversos fatores. Pode-se tratar de um traumatis­mo de crânio: no quadro das cefaléias pós-traumáticas existe um contingen­te de cefaléias enxaquecosas, seja causado por um agravamento, através do traumatismo, de uma enxaqueca preexistente, seja pelo seu aparecimento como o fator desencadeante nos indivíduos inicialmente sem enxaqueca. As tendências depressivas são comuns nos doentes em que a enxaqueca apresenta uma fase de gravidade; é também difícil saber se a depressão é a conseqüência ou a causa do agravamento da enxaqueca; qualquer que seja, o tratamento do fator depressivo apresenta, habitualmente, um resultado favorável. O desenvolvimento de hipertensão arterial é outro fator de agravamento que deve ser lembrado sempre que uma enxaqueca, até então bem tolerada, passa a ter uma forma grave.

– Não é raro assistir, na segunda metade da vida, a uma diminuição da freqüência de acessos, ou até mesmo a seu desaparecimento. Na mulher a menopausa marca freqüentemente uma etapa evolutiva, pois as crises es­paçam-se após um período de agravamento algumas vezes importante. De fato, o polimorfismo evolutivo é muito grande; é possível, ainda que raro, observar-se enxaquecas de aparecimento tardio, tendo início, por exemplo, durante a menopausa; nesses casos, o diagnóstico não pode ser firmado a não ser com muita prudência.

Cluster headache e algias vasculares da face. Uma variedade de cefaléias tipo enxaqueca merece ser individualizada em razão da sua evolução muito particular, bem destacada pelo termo inglês cluster headache: cefaléias agrupadas, "em cachos". Trata-se de uma afecção que evolui de uma forma periódica. Durante os períodos dolorosos, que duram de algumas semanas a vários meses, o doente sofre diariamente, apresentando ao menos um acesso a cada 24 horas. Cada acesso dura de meia hora a duas horas e é acompanhado por alterações vasossecretoras importantes: hiperemia conjuntival, lacrimejamento, rinorréia. Os períodos dolorosos estão separados por intervalos livres de qualquer acesso durante meses ou mesmo anos. Em regra, a dor acomete sempre o mesmo lado do crânio, não somente de um acesso a outro, mas também durante períodos dolorosos sucessivos. Esta variedade de cefaléias tem semelhanças com a enxaqueca, ao menos por seu mecanismo vascular e por seu tratamento. Esta síndrome, que predomina no sexo masculino, contrário da enxaqueca comum, é notável pela sua evolução paroxística, pelo caráter fixo da topografia dolorosa, que se acompanha de fenômenos vasomotores e secretórios, podendo acometer a face, preferencialmente a região orbitária e do maxilar. Essas algias vasculares da face ou neural­gias faciais do tipo enxaqueca precisam ser distinguidas formalmente da neuralgia do trigêmeo. Os medicamentos ativos para as algias faciais são os mesmos que para a enxaqueca.

3. Etiologia e fisiopatologia

Todos os trabalhos ressaltam o caráter familiar da enxaqueca, encon­trando-se antecedentes de enxaqueca em um ou outro dos pais, alguns autores dizem que é somente matrilinear, em 70 a 90% dos casos.

Além da predisposição familiar, outros fatores podem concorrer para o desencadeamento das crises. Os fatores psíquicos têm um papel prepon­derante. Os estados de tensão, as situações de conflito e as manifestações de depressão e ansiedade agravam a enxaqueca com a particularidade das crises surgirem freqüentemente no período de descontração e relaxamento (enxaqueca do fim de semana, do início de férias). Alguns perfis psico­lógicos favorecem estados de tensão que se podem associar às enxaquecas, em particular os de tipo obsessivo e perfeccionista. Os fatores alimen­tares são freqüentemente incriminados pelos doentes: além do álcool, pode-se estabelecer a responsabilidade de alguns alimentos por meio de estudos duplo-cegos. Nestes casos, apesar da possível relação com um mecanismo alérgico, deve-se considerar também o teor de substâncias, tais como a tiramina, contidas nos alimentos, capazes de interferir com a vasomotricidade das artérias cefálicas. A importância dos fatores en­dócrinos é evidente nas enxaquecas catamênicas; a melhora freqüente, mas inconstante, da enxaqueca durante a gravidez nos dá um outro exem­plo. Finalmente, o uso de anticoncepcionais orais pode revelar ou agravar a en­xaqueca, tornando necessário uma substituição desta forma de contracep­ção.

A fisiopatologia dos acessos de enxaqueca está imperfeitamente elucidada. Admite-se que a fase prodrômica das enxaquecas oftálmicas e das enxaquecas acompanhadas é a conseqüência de uma isquemia por vasoconstrição das artérias cerebrais. A cefaléia é atribuída a uma vaso­dilatação e hiperpulsatilidade arterial no território da carótida externa, tan­to ao nível de seus ramos meníngeos como no de seus ramos extracra­nianos. Esta "dilatação" arterial acompanha-se de modificação da permeabilidade vascular, produzindo um edema e passagem pela parede arterial de polipeptídios da série das cininas que têm grande importância na gênese da dor. O mecanismo destas perturbações vasomotoras permanece discutido principalmente no tocante ao fator neurogênico, sob a forma de uma descarga neurovegetativa integrada ao nível do hipotálamo, e aos neurotransmissores, entre eles a oscilação do nível sérico de serotonina.

Cefaléias Sintomáticas

Da mesma forma que uma dor da face, uma cefaléia pode ser a conse­qüência de estimulações de estruturas sensíveis por um processo pato­lógico. A projeção, sob a forma de cefaléia, de dores que nascem em es­truturas endocranianas confere, às cefaléias, grande parte de seu interesse semiológico.

Os processos patológicos desenvolvidos ao nível dos seios paranasais (notadamente as sinusites profundas, etmoidais ou esfenoidais), ou no interior da ca­vidade orbitária (glaucoma), podem determinar cefaléias ou algias faciais, na mesma proporção.

A cefaléia da síndrome meníngea indica, em grande número de casos, uma hipertensão intracraniana. Ela é intensa, permanente, exacer­bada pela tosse, pela pressão abdominal e pela flexão da nuca. Pode ser relativamente diminuída pela punção lombar. É necessário, entretanto, citar a inflamação de estruturas da base como um agravante da intensidade da cefaléia, mesmo na ausência de hipertensão liquórica (LCR) em algumas meningites tuberculosas, cujas lesões predominam na região da base. Quanto às hemorragias meníngeas, lembremos que elas podem provocar uma cefaléia inicialmente localizada e que este local é importante como in­dicação para a pesquisa de uma malformação. Mencionemos a cefaléia localizada do hematoma subdural, comumente associada a uma dor provocada pela pressão da fossa temporal.

É através de uma repercussão mecânica sobre as estruturas sensíveis da base que a hipertensão intracraniana das meningites gera cefaléias; esta repercussão é tanto mais acentuada quanto mais aguda for a síndrome meníngea. Esta repercussão mecânica pode resultar de uma hipotensão do LCR: isto ocorre nas cefaléias pós-punção lombar, diretamente ligadas à perda liquórica.

A cefaléia dos tumores cerebrais é habitualmente atribuída a este mesmo mecanismo de hipertensão intracraniana. Se algumas cefaléias difusas, permanentes, exacerbadas pela tosse ou pelo menor movimento parecem caracterizar bem este mecanismo, é necessário levar em conta a repercussão mecânica da neoformação sobre as estruturas vizinhas. Este mecanismo intervém de maneira predominante quando um tumor se revela através de uma cefaléia localizada: esta cefaléia fornece uma indi­cação da localização do tumor somente em um terço dos casos se ocorre um edema de papila no fundo de olho, mas esta proporção se eleva a dois terços na ausência de modificações papilares. A cefaléia das neoformações intracranianas é mais ou menos intensa, bastante fixa nas suas características, mais habitual­mente descontínua do que contínua. Ela é quase constante nas neofor­mações da fossa posterior, da qual é geralmente o primeiro sinal. Apresen­ta, neste caso, um valor localizador caso se limite à região occipital, porém pode ser frontal ou generalizada. A cefaléia é menos constante nas neofor­mações supratentoriais, onde, entretanto, seria o primeiro sintoma em um terço dos casos; ela é raramente percebida na região occipital, a menos que exista um edema papilar. A cefaléia dos tumores do terceiro ventrículo pode evoluir por acessos paroxísticos breves, porém de extrema violência, freqüentemente desencadeada por um esforço ou movimento, e a cefaléia bitemporal dos tumores hipofisários, que alargam a sela turca.

Devemos observar que uma cefaléia de aparição recente é freqüentemen­te reveladora de uma neoformação intracraniana. Na ausência de qualquer sinal anormal ao exame neurológico e de qualquer anomalia de fundo de olho, a probabilidade que esta cefaléia tenha uma relação com uma neofor­mação é pequena. Entretanto, em certas localizações (lobo temporal di­reito, loja hipofisária, linha mediana, fossa posterior), a cefaléia pode ser durante muito tempo um sinal isolado. Nesse caso, a análise das carac­terísticas da dor deve ser suficiente para indicar a utilização de explorações especiais.

A arterite temporal merece um desenvolvimento especial no quadro das cefaléias de causa localizada. Deve-se pensar nela diante de toda cefaléia que surge no indivíduo idoso, sendo a idade de predileção em torno de 70 anos. A cefaléia é precedida de uma fase prodrômica, que dura de alguns dias a algumas semanas, caracterizada por uma alteração do es­tado geral, de fenômenos dolorosos difusos e um estado subfebril. A ce­faléia é ordinariamente violenta, permanente, com recrudescências pa­roxísticas, temporal, mas de localização às vezes atípica, notadamente oc­cipital. Ela se acompanha de sinais locais: artéria temporal espessada, rígida, não pulsátil, dolorosa à palpação; essas anomalias podem ser bi­laterais. Ocorre constantemente um aumento da velocidade de hemos­sedimentação (VHS), habitualmente muito acentuado, da ordem de 80 a 100 mm na primeira hora e uma elevação das alfa-2-globulinas. A biópsia da artéria temporal mostra lesões de pan-arterite de células gi­gantes. O diagnóstico deve ser feito precocemente, em razão do risco de cegueira por trombose da artéria oftálmica ou de seus ramos. Na realidade, o processo inflamatório ultrapassa em grande parte a artéria temporal e os outros ramos da carótida externa; esta propagação do acometimento ar­terial é responsável pelo polimorfismo da doença: além da cegueira, é pos­sível observar-se acidentes vasculares encefálicos (cerebrais), manifestações corona­rianas e lesões reumáticas (pseudopoliartrite rizomélica).

A etiologia da doença permanece desconhecida. Entretanto, os cor­ticóides têm notável eficácia, determinando um rápido desaparecimento da cefaléia e das alterações biológicas, reduzindo consideravelmente o risco de complicações, especialmente oculares. A duração do tratamento deve ser em torno de dois anos para evitar uma recidiva, bem como outras com­plicações.

As cefaléias pós-traumáticas (impacto mecânico) são de extrema freqüência, sem que haja uma concordância entre a gravidade do traumatismo e a importância da cefaléia. As cefaléias pós-traumáticas podem, de maneira excepcional, es­tar em relação com um hematoma subdural: se a cefaléia é intensa, lo­calizada, e se acompanha de alguns sinais neurológicos, mesmo flutuantes, existindo ainda uma pequena suspeita de hipertensão intracraniana, torna­-se obrigatória a realização de exames complementares, em especial as neuroimagens.

Na grande maioria dos casos a cefaléia pós-traumática não tem tal sig­nificação. Algumas vezes trata-se de uma cefaléia localizada, fixa, de caráter vascular, evoluindo por crises e bastante semelhante às algias vas­culares.

Mais freqüentemente, trata-se de uma cefaléia de tensão muscular: ora ela se integra dentro de uma síndrome subjetiva pós-traumática, onde a tensão muscular parece participar das dificuldades de manutenção da posição ereta; ora a cefaléia é uma das manifestações de um transtorno (emocional) de estresse pós­-traumático.

Finalmente, resta estudar as cefaléias de causa geral. Uma cefaléia pode ser reveladora de uma anemia ou de uma poliglobulia. Ela pode ser o índice de uma anóxia (cefaléia de altitude, cefaléia reveladora de uma in­toxicação oxicarbonada) ou de uma hipercapnia (insuficiência respiratória). As cefaléias da hipertensão merecem uma breve discussão: os indivíduos que apresentam hipertensão arterial queixam-se freqüentemente de ce­faléias cujo significado é variável e deve ser discutido em cada caso. Pode-se tratar de uma cefaléia de tensão ligada a um estado de ansiedade desen­cadeado ou aumentado pela descoberta da hipertensão. Pode, também, tratar-se de enxaqueca, revelada ou agravada pela hipertensão arterial. O mais específico da hipertensão é a cefaléia occipital, que ocorre pela manhã, quando o doente se levanta, e tende a se atenuar durante o dia. A cefaléia pode ser, ainda, o sinal de um acidente vascular encefálico (cerebral), mais freqüen­temente hemorrágico, ou de uma manifestação de edema agudo cere­bromeníngeo que caracteriza a evolução de uma hipertensão arterial maligna.

Cefaléias e Algias Faciais de Origem Psíquica

O estudo das cefaléias e das algias faciais orgânicas mostra que existe em todos os casos uma dimensão psicológica da dor que depende, em grande parte, do significado que o doente lhe confere. Ao contrário, as cefaléias ou algias faciais podem ser verdadeiras cenestopatias independentes de uma etiologia orgânica e que apresentam o significado a ser interpretado em análise. Essas cefaléias "psicogênicas" desen­cadeiam os processos de "somatização" cujo sentido é muitas vezes aparente (receio de um tumor cerebral, de perda da razão etc.), mas que pode também permanecer inaparente.

Se as psicalgias desafiam toda descrição semiológica, observa-se no quadro das cefaléias uma síndrome que chama a atenção em razão de seus caracteres relativamente definidos, do mesmo modo que sua freqüência é realmente um problema cotidiano na prática médica: trata-se das cefaléias de tensão muscular.

A dor é permanente ou semipermanente; mais acentuada pela manhã, pode diminuir no fim do dia, mas não desaparece inteiramente. Em alguns casos, ela envolve a cabeça, dando uma sensação de capacete; mas freqüen­temente é bifrontal, occipital e até cervical. Na maioria dos casos, os doen­tes reconhecem facilmente que a dor é sentida na parte externa do crânio e admitem que seja associada a uma sensação de tremor superficial, sob o couro cabeludo. A dor não é agravada pela tosse, espirro ou movimentos e pode-se acentuar quando em um esforço de atenção.

Observa -se o aparecimento de uma dor superficial à pressão das regiões parietais, à palpação dos músculos cervicais ou durante a exploração da emergência do nervo occipital de Arnold.

Esse tipo de cefaléia tem origem nas articulações das primeiras vértebras cervicais e nos músculos submetidos a um estado de contração anormal. Quando se submete esses doentes ao eletrencefalograma, este caracteriza-se por uma atividade muscular ininterrupta, e a eletromiografia permite demonstrar que tal atividade anormal é a dos músculos cervicais. Algumas causas locais podem ser a origem dessa atividade anormal de músculos cer­vicais e cefálicos; uma artrose cervical severa, uma malformação da char­neira craniorraquiana, uma anomalia do funcionamento da articulação temporomandibular, uma alteração da visão binocular, uma inflamação crônica das cavidades faciais e até uma autêntica enxaqueca podem ser a origem de um estado de tensão anormal; o sintoma cefálico é sempre des­proporcional às causas. De maneira constante, a cefaléia de tensão mus­cular determina um aumento do tônus afetivo, e, em muitos casos, esse fator psicológico parece ser o único responsável. Isto ocorre nas cefaléias occipitais dos estados depressivos. De diagnóstico fácil no contexto típico da depressão, essa cefaléia será mais dificilmente relacionada à sua causa quando se trata de um estado depressivo atípico: deve-se ter em conta, ainda, algumas alterações do sono, de uma astenia matinal, de um desinteresse profissional etc. Mais freqüentemente, a cefaléia de tensão não ­está em relação com uma depressão verdadeira, mas com um estado emocional onde predomina a ansiedade. Um aspecto particular é visto na ce­faléia de atenção, onde a dor intolerável da tensão muscular impede o pros­seguimento de qualquer esforço de concentração intelectual. Tais cefaléias pertencem, por pleno direito, ao domínio da medicina psicossomática e psicologia clínica. Al­gumas delas exigem que se pesquise um estado depressivo e se aplique um fármaco antidepressivo; por outro lado, é importante não negligenciar um fator local que desempenha o papel de origem ou que contribua para a manutenção da cefaléia; porém, é necessário, antes de tudo, travar um relacionamento e conversar pacientemente com o doente, fornecendo-lhe as explicações que procura.

Tratamento da enxaqueca

Opções terapêuticas no tratamento das crises de enxaqueca

Três classes de drogas foram cientificamente validadas para o tratamento das crises:

1. agonistas 5-HT1 (receptor de serotonina),

2. antagonistas da dopamina, e

3. inibidores da prostaglandina.

*  *  *
1. Agonistas 5-HT1

Os agonistas 5-HT1 podem ser divididos em seletivos e não-seletivos.

Todos os triptanos (sumatriptano, zolmitriptano, naratriptano, rizatriptano, eletriptano, almatriptano e fravotriptano) são seletivos por natureza.

Os não-seletivos incluem a ergotamina e a dihidroergotamina (DHE), que se ligam a receptores dopaminérgicos, o que pode explicar as náuseas que costumam provocar.

Alguns nomes comerciais: sumatriptano (Sumax, Imigran); zolmitriptano (Zomig); naratriptano (Naramig); Rizatriptano (Maxalt)

 
Agonistas 5-HT1 não-seletivos

Ergotamina

A ergotamina produz potente e seletiva constrição da artéria carótida externa e de seus ramos. Nas doses usuais, ocorre somente pequeno bloqueio alfadrenérgico, e o efeito vasoconstritor é mediado por ação sobre receptores arteriais de serotonina. Os alcalóides do ergot deprimem a taxa de "firing" dos neurônios serotoninérgicos do tronco cerebral, e esta estabilização da transmissão serotoninérgica parece ser a maior ação da ergotamina, o que parece ser também o caso das drogas preventivas usadas na enxaqueca.

Dihidroergotamina (DHE)

Aproximadamente 10 anos após a introdução da ergotamina, a DHE foi estudada em sua eficácia para abortar crises de enxaqueca e foi tida como boa, senão melhor do que a ergotamina. A DHE tem efeitos nulos ou mínimos de constrição arterial periférica, comparada com a ergotamina. Estudos modernos confirmaram isto, mas mostraram que é potente venoconstritora, explicando sua utilidade no tratamento da hipotensão ortostática. Com a ergotamina, pode ocorrer hipersensibilidade idiossincrásica, com raros casos de severo espasmo arterial periférico ou coronariano. A DHE está disponível em preparações parenterais e em spray nasal. Pode ser usada endovenosamente, podendo terminar com uma crise de enxaqueca, mesmo que acompanhada de vômitos profusos e prostração. Não provoca dependência física.

2. Antagonistas da dopamina e agentes pró-cinéticos

Existe alguma evidência sugerindo que o sistema dopaminérgico é ativado durante as fases iniciais da crise de enxaqueca, como pródromo. As náuseas e vômitos associados são também devidos à ativação do sistema dopaminérgico. Em adição, existe uma gastroparesia relativa durante a crise de enxaqueca, resultando em absorção pobre de medicamentos. Agentes pró-cinéticos, como a metoclopramida (Plasil), aumentam a mobilidade gástrica e melhoram a absorção, além de ser antieméticos eficazes. Agentes antidopaminérgicos usados nas crises de enxaqueca incluem clorpromazina EV (Amplictil), proclorperazina EV, metoclopramida, droperidol EV e domperidona. Em salas de emergência a difenidramina EV é também útil.

3. Inibidores da prostaglandina, tais como os antiinflamatórios não-hormonais (AINH) são eficazes em crises leves a moderadas. AINH como a indometacina reduz a inflamação neurogênica do sistema vascular trigeminal em estudos experimentais. Vários AINH são tão eficazes ou melhores do que a ergotamina. Aspirina e metoclopramida associadas têm apenas pouco menor eficácia do que o sumatriptano. O naproxeno sódico (550-750mg) é bastante eficaz em crises leves a moderadas. O ketorolac (60mg IM) é útil em muitas crises. Os inibidores da COX-2 são também úteis. Quando combinados com metoclopramida, os AINH produzem melhores resultados.

Associações racionais nas crises de enxaqueca

A combinação de drogas antienxaqueca pode ser útil no tratamento das crises; por exemplo, um AINH pode ser combinado com ergotamina ou com triptanos. Medicações antinauseantes (metoclopramida, antagonista da dopamina) podem ser combinadas com AINH, triptanos, ergotamina, ou DHE.

Opióides no tratamento da enxaqueca

Os opióides não têm vez no manejo rotineiro das enxaquecas. Mesmo assim podem ser usados, quando os agonistas 5-HT1 forem totalmente ineficazes ou contra-indicados, como nos pacientes com cardiopatia isquêmica. Misturando opióides com DHE ou triptanos ocorre anulação do efeito destes. O opióide mais usado é a meperidina (Dolantina).

Opções de uso corrente na profilaxia da enxaqueca

Bloqueadores betadrenérgicos: propranolol, timolol, metoprolol, nadolol

Antidepressivos tricíclicos (ATC): amitriptilina, nortriptilina, doxepina, protriptilina, desipramina, imipramina

Inibidores Seletivos da Recaptação da Serotonina (ISRS)

Bloqueadores de canal de cálcio: verapamil, flunarizina, diltiazem

Antagonistas 5-HT2: metisergida, ciproheptadina, pizotifeno

AINH: naproxeno sódico

Drogas anticonvulsivantes: valproato e divalproato de sódio, gabapentina, pregabalina, topiramato.

Acesso à Plataforma

Assine a nossa newsletter