Precisaremos entender iniciando esse artigo, que o diagnóstico em psicanálise cumpre uma função bem diferente do que tem para a especialidade médica, tanto no que entende a respeito das doenças mentais, como na função diagnóstica propriamente dita, e ainda naquilo que entenderá como prognóstico e terapêutica ou o objetivo e meta a cumprir.
Primeiramente torna-se então necessário, desmistificar o lugar do analista, retirando-o da função do que se tem chamado de "normalização", ou ainda "normatização" do comportamento manifesto do sujeito psíquico que procura o chamado tratamento psicanalítico.
No link A, inserido no final desse artigo se poderá ler um trabalho, com um relato de um caso clínico atendido onde isso está muito bem exemplificado, tratando-se o paciente de uma criança de 4 anos que sofreu desde os seus 18 meses toda espécie de agressão sexual e apresentando ao procurar um tratamento todo um comportamento decorrente dos abusos sofridos por um amigo de seu pai e com a conivência desse. Havia na busca da análise um pedido de adequação dessa criança aos padrões exigidos pela escola e seu meio-ambiente. A fala da mãe ao procurar a psicanalista trazia como característica:
"Todo mundo me diz que é preciso normalizá-lo para que ele seja como as outras crianças que não têm problemas". Essa demanda de normalização referia-se tanto ao comportamento quanto às realizações escolares de seu filho: "A professora dele me aconselhou a discutir com você um modo de corrigir a tendência de Nicolas à dislexia." (A)
Fica evidenciada a questão de qual será a função do psicanalista ao demarcar em um diagnóstico questões que como sabemos trazem uma fala oculta, essa fala muitas vezes representando uma busca desesperada em lidar com os aspectos perversos do mundo que cerca e abriga os vínculos daquele paciente. Fala-nos Amal Hachet que escreve esse artigo:
"Como manter nosso papel de analistas ante uma sociedade que nos obriga a normalizar um distúrbio que, entretanto, tem toda a razão de ser? Como fazer quando às vezes nos encontramos na situação de sermos levados a atuar, talvez mesmo a agir na realidade, como garantir um papel que não é o nosso, tal como o de bancar o juiz como no caso de Nicolas? Qual o valor de uma lei insuficiente, que não garante seu papel de proteção da criança entregue às atuações perversas dos ‘adultos'?"(A)
Essas são questões que, na atualidade, o uso de uma psicopatologia bastante inspirada na proposta por Freud, vem trazendo frente à demanda da sociedade. E toda essa intervenção se iniciará quando se pensa o social como alheio a formação do psiquismo e não ele enquanto orientador de parâmetros para o acontecer do vínculo humano. A serviço de que estaria patologizar o indivíduo e não sua relação com o mundo, vista e abordada de duas origens, da do indivíduo para o mundo e da do mundo para com o indivíduo? Tratamos aqui com o termo indivíduo, para nessa análise afastá-lo o máximo possível, do ser que trata a psicanálise, sendo de maneira diferente, por ela denominado de 'sujeito psíquico'. O resultado de se entender o vínculo humano separado de sua inserção desde sempre em um modelo social implicará em que se tente entender seu sofrimento desvinculado daquilo que o que o cerca pode promover em saúde ou doença psíquica. Dessa maneira surgirá uma psicopatologia, cópia de uma leitura freudiana, mas que se afasta dela se adequando a um modelo médico-normativo.
Freud ao dar início a toda a compreensão que levaria ao modelo de psicopatologia em psicanálise, dispunha de pouquíssimos elementos para partir seus estudos. Algumas observações feitas por Breuer e Charcot o levaram a voltar sua atenção quanto ao papel da sexualidade na etiologia das doenças psíquicas. Teremos que ter também em conta, para nossa compreensão, o quanto na verdade Freud tentará entender o sofrimento físico existente nos sintomas conversivos, pela via da vida afetiva, pelos laços do paciente com as pessoas com quem estabelece suas relações de amor e ódio.
Começando lá em Anna O., Freud evidenciará desde sempre a busca da compreensão dos quadros por ele enunciados, advinda do entrelaçamento entre desejos proibidos(aqui levando-se em conta o momento histórico e suas normas sociais) e sua colocação nos vínculos do paciente, inicialmente muito relacionada à noção de trauma ou núcleo patógeno. Desde cedo a criança é submetida a essas duas imperiosas vontades, de seus impulsos internos e toda a adequação que devem sofrer para que possam encontrar a gratificação, passando pelo teste de realidade, o nível simbólico e as proibições que se apresentam primeiramente pelo superego dos pais e depois internalizadas no desenvolvimento de um superego próprio que fará representar também todas as expectativas do mundo exterior. Parece-nos então, praticamente inseparável, as linhas que se entrelaçam formando o quadro neurótico, psicótico ou perverso assim como os traços de caráter.
O que há de mais fascinante na psicopatologia freudiana é justamente seu grau de aparente simplicidade. Freud irá propor como existentes as neuroses de transferência (histerias: de angústia (fobias) – de conversão, n. obsessiva), as neuroses narcísicas ou psicoses e as perversões. Dentro de cada um desses agrupamentos encontraremos uma lista de suas possibilidades, mas dentro dessa lista, partiremos sempre da visão que mantêm entre si uma semelhança em sua dinâmica e economia.
Em Laplanche e Pontalis encontraremos a seguinte evolução:
* 1915–Neuroses atuais — Psiconeuroses de transferência Narcísicas
* 1924–Neuroses atuais –Neuroses — Neuroses narcísicas –Psicoses
* Classificação Contemporânea — Afecções psicossomáticas–Neuroses– Psicoses
# Maníaco-depressiva
-> paranóia
-> esquizofrenia
Segundo ainda os autores do quadro acima descrito, o termo "neurose" parece ter sido proposto por Willen Cullen (médico escocês) em 1777. Após muitas variações de uso de acordo com países diferentes, Freud encontrará em entre 1895 e 1900 "na cultura psiquiátrica de língua alemã uma distinção relativamente segura do ponto de vista clínico entre psicose e neurose" e ainda desde o início bastante diferenciada das duas, abordaria a questão das perversões. Será Jung que introduzirá a expressão "neurose de transferência" no sentido de oposição a "psicose".
A psicopatologia psicanalítica irá se desenvolver ao longo de todo séc. XX e apresentando algumas variações de acordo com a escola ou linha de abordagem, mas todas elas de alguma maneira seguindo as orientações de separação dos quadros de acordo como está posto acima, já proposto desde as últimas conceituações elaboradas por S. Freud.
Hoje o debate gira em torno dos chamados quadros limítrofes e no entendimento da existência de quadros na verdade mistos ou ainda como conceitua W. Ronald D. Fairbairn a questão das estruturas subjacentes (vide artigo dessa coluna: A Melancolia – Um Olhar) que será encontrada de alguma maneira nos autores que descrevem quadros com comorbidades. Nesse aspecto, priorizando a leitura pelas relações objetais, é interessante observarmos também um quadro proposto por Fairbairn:
"A natureza das relações de objeto características das quatro técnicas é a seguinte:
Técnica Objeto Aceito Objeto Rechaçado
Obsessiva Internalizado Internalizado
Paranóide Internalizado Externalizado
Histérica Externalizado Internalizado
Fóbica Externalizado Externalizado"
Estaria proposto como complementar a esse quadro, uma fase anterior de dependência infantil correspondente aos núcleos esquizóides e depressivos.
Embora esse seja um esquema muito particular desse autor, nos parece que de maneira esquemática, servirá para apoiar uma leitura mais abrangente em termos de psicopatologia psicanalítica contemporânea com suas variações, se opondo às escolas que apresentam-na com a leitura de estruturas fixas e muito bem delimitadas, com sintomatologia bem estanques, mesmo que para essas escolas o diagnóstico não seja algo de extrema importância e nem determinem o curso da análise.
Fato é que construir aquilo que podemos conceituar como "hipótese diagnóstica" em uma abordagem psicanalítica jamais se constituirá como uma proposta de ter aquele sujeito psíquico totalmente mapeado e decorrendo daí uma orientação ou um traçado caminho para o seu processo analítico. No máximo, essa servirá para que o psicanalista possa estar preparado para alguns pontos prováveis a se desenrolarem no curso da transferência. Ela não pretende por sua existência, propor a forma "curativa" do sofrimento trazido para o divã. Antes de tudo ela se constituirá como uma escuta não focada, uma neutralidade que evita qualquer nível educativo (normatizador), e longe de ter como traçada, qualquer meta terapêutica. Esses aspectos sem dúvida diferenciam "as psicanálises" de outras linhas da "psicologia clínica".
Freud construiu uma noção de psicopatologia absolutamente própria à sua teoria, trazendo na verdade pouquíssima semelhança com o que se tinha posto em sua época sobre tudo que se entendia enquanto "doenças mentais" e ainda do que estaria em suas bases. Trouxe um amplo e complexo entendimento em relação ao que fazia com que se originassem e gerando uma compreensão sobre seu funcionamento, diferente de tudo até ali abordado tanto pela medicina, quanto pela iniciante e insipiente psicologia de sua época.
"Freud não inventou somente um método de investigação da mente e de tratamento psicológico por meio da palavra; ao fazê-lo, contribuiu também para mudar definitivamente a maneira de os homens se pensarem e compreenderem o mundo, conferindo importância central à dimensão simbólica e histórica de todo comportamento." (B)
Em seu texto "Psicopatologia da Vida Cotidiana"(1901) nos brinda com fartos exemplos do uso da psicanálise para o entendimento de atos falhos, lapsos, esquecimentos e chistes tão presentes em nossa vida diária e que na verdade nos exibem a verdade do Inconsciente de maneira bela e singela. Para além dos transtornos "ele", o Inconsciente, está aqui para movimentar nossa existência propondo motivos e impulsos por nós desconhecidos (no que pensamos que seja esse eu – consciência).
"O inconsciente é muito exatamente a hipótese de que a gente não sonha apenas quando dorme." (J. Lacan, Une pratique de bavardage.) citado em (C)
Vejamos um exemplo:
"(9) Eis um exemplo de esquecimento de nome com outra motivação muito sutil, explicado pelo próprio sujeito afetado:
"Quando eu fazia uma prova de filosofia como matéria complementar, o examinador interrogou-me sobre a doutrina de Epicuro e, depois disso, perguntou se eu sabia quem a havia retomado em séculos posteriores. Respondi com o nome de Pierre Gassendi, que eu ouvira descreverem como discípulo de Epicuro dois dias antes, num café. Ante a pergunta surpresa sobre como eu sabia disso, respondi atrevidamente que há muito me interessava por Gassendi. A conseqüência foi um magna cum laude [com louvor] no diploma, porém, infelizmente, também uma obstinada tendência posterior a esquecer o nome de Gassendi. Creio que minha consciência pesada é culpada de minha impossibilidade de lembrar esse nome, apesar de todos os meus esforços. É que, na verdade, também naquela ocasião eu não deveria tê-lo sabido."(1)
Outros ótimos exemplos serão encontrados nos textos "Chistes e suas relações com o Inconsciente"(1905) e "As sutilezas de um Ato Falho"(1935)
Como aprisionar toda a iniciativa "libertária" contida na psicopatologia proposta por Sigmund em uma orientação quase asséptica de "cura" proposta por uma grande parte das pesquisas atuais em transtornos mentais?
Como argumentaríamos com o fato de que: "A grande reviravolta que Freud operou em relação à concepção psiquiátrica das psicoses foi a de enunciar que o delírio não é a psicose, mas, ao contrário, a tentativa de cura da psicose"? (C)
Para entendermos o funcionamento dos quadros neuróticos poderíamos esquematizar da seguinte maneira:
* Conflito -> Neurose -> Bloqueio da descarga pulsional -> Represamento da pulsão -> Ego não suporta -> Sintoma
Dentro dessa esquematização, reconhecemos que muito simples, onde delimitaríamos o trabalho próprio daquilo que entenderemos como o "fazer psicanalítico"? A cura está na retirada rápida dos sintomas ou na possibilidade de ouvi-los e encontrar-se com um ego capaz de lidar, de outra maneira, com o conflito que originou todo o esquema que aponta para o sintoma?
Certo é que, como apontam Laplanche e Pontalis, a psicopatologia em psicanálise continua e parece sempre continuará evoluindo em seus conceitos de uma maneira ininterrupta e não necessariamente em direção contínua. Talvez esteja na hora apenas de retomar os parâmetros onde ela se assentou, lá onde nasceu, com a proposta de libertar e não de acomodar, para isso sempre existiram os sintomas.
Bibliografia:
1 – “A Psicopatologia da Vida Cotidiana” vol. VI Obras Completas – S. Freud
2 – Estudos Psicanalíticos da Personalidade – Fairbairn
3 – Vocabulário da Psicanálise – J. Laplanche e J.-B. Pontalis
4 – Teoria Psicanalítica das Neuroses – Otto Fenichel
Links consultados:
A – Clique aqui
B – Clique aqui
C – Clique aqui