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Sistemas físicos. Formalismo e Interpretação – parte II

Ainda que estejamos seguros do conceito intui­tivo que se tem de um sistema físico, convém buscarmos uma definição precisa, pois de sua análise surgirão alguns elementos importantes.
Deixando para mais adiante a questão da existência ou não de um mundo externo à nossa cons­ciência e supondo que algo externo a nós, ao que chamamos "realidade", existe, pode-se definir o sistema físico como uma abstração da realidade que se faz ao selecionar da mesma alguns observáveis relevantes. O sistema físico está composto, então, por um conjun­to de observáveis que se elegem em forma algo arbitrária.

Um exemplo desta definição. Tomemos uma pedra. A simples observação revela que a realidade da pedra é complexa: possui uma forma própria; sua superfície tem uma textura particular; seu peso nos in­dica uma quantidade de matéria; notamos que sua tempera­tura depende de sua recente interação com seu meio ambiente; pode estar posicionada em diferentes lugares e mover-se e girar com diferentes velocidades; sua composição química é muito ampla, contendo um grande nú­mero de elementos, entre os quais o silício é o mais abundante; uma análise microscópica revelará que está formada por muitos domínios pequeníssimos em cujo in­terior os átomos integram uma rede cristalina regular; a pedra pode esconder algum inseto petrificado há milhares de anos; até chegar a nossas mãos, teve uma história que lhe deixou traços; ainda ­que seja altamente duvidoso, nenhuma observação ou raciocínio nos permite afirmar com certeza que a pedra não tenha consciência de sua própria existência e por aí vai.

Vemos que a realidade da "simples" pedra é muito complexa, com características que dela participam, sem prioridades. Contudo, quando um físico estuda a queda li­vre dos corpos e toma uma pedra como exemplo, de toda essa complexa realidade seleciona somente sua posi­ção e velocidade. Assim, o físico define um sistema físi­co simples. As demais características foram declaradas irrelevantes para o comportamento físico do sistema, se bem que algumas podem ser incluídas nele segundo as neces­sidades.

Por exemplo, podemos incluir a forma e a rugosi­dade da superfície da pedra se desejamos estudar o atrito com o ar durante a queda, mas se supõe que a história da pedra não afetará esta ação.

O exemplo apresentado põe em evidência que é um erro identificar o sistema físico com a realidade; nosso sistema sensitivo-sensorial nos informa rapidamente disso, porque perce­bemos que a pedra é algo mais que sua posição. A per­cepção sensorial nos protege. Contudo, os sistemas físicos que se estudam com a mecânica quântica não têm um contato direto com nossos sentidos e dita proteção é desativada. Seria um equívoco se afirmássemos que o sistema físico composto por um átomo de hidro­gênio ou um elétron abarca necessariamente a totalidade da realidade dos mesmos.

Não podemos estar segu­ros de não haver omitido em nossa seleção do sistema físico alguma propriedade relevante da realidade que ainda não tenha se manifestado ao nosso estudo ou que nunca o fará. Estas considerações são importantes para conce­ber a possibilidade de certas interpretações da mecâ­nica quântica, onde estas propriedades, relevantes, mas não conhecidas (ou não conhecíveis), levam o nome de "va­riáveis ocultas", que trataremos mais adiante.

O conceito de "observável" que aparece na definição de sistema físico surgirá inúmeras vezes em nossos artigos. Como o nome indica, um observável é uma qualidade susceptível de ser observada. Mas em física é necessário ser um pouco mais preciso: um observável é uma qualidade da realidade à qual existe um procedimento experimental, a medição, cujo resulta­do pode ser expresso por um número.

Esta definição é suficientemente ampla para abarcar a todos os obser­váveis que participam nos sistemas físicos, mas exclui muitas qualidades que em outros contextos podem ser qualificadas como observáveis. Por exemplo, um matiz de cor em um quadro de Botticelli é "observável" porque existem for­mas de caracterizá-Io mediante certos números, tais como as intensidades e freqüências de luz absorvida ou refletida, mas a beleza do "Nascimento da Primave­ra" de Botticelli não seria observável. O som que surge de um violino Stradivarius é observável no sentido do físico, mas a emoção que este som transmite não o é.

É o que se chama em Filosofia da Mente de "qualia".

Isso não significa que o físico seja insensível à beleza ou que não sinta emoções. Ao contrário, é possível demonstrar que justamente a busca de beleza e harmonia foi um dos principais motores na geração de novos conhecimentos na história da física. R. Feynman nos lembra que pode haver tanta beleza na descrição que um físico faz das reações nucleares no Sol como a que há na descrição que um poeta faz do pôr-do-Sol.

Os observáveis de um sistema físico serão designados neste escrito por uma letra A, B etc. Consideremos um observável qualquer A e suponhamos que se realizou o experimento correspondente para observá-Io, o qual teve como resultado um número que designamos por a. O observável A tem assinalado o valor a, evento que será simbolizado por A = a, e que será denominado uma "propriedade do sistema".

Tomemos, por exemplo, uma partícula que se move ao longo de uma reta (alguém cami­nhando pela rua). Para este sistema físico simples, a posição relativa a algum ponto eleito como referência é um observável que podemos designar com X. Uma pro­priedade deste sistema físico é X = 5 metros, que significa que a posição da partícula é de 5 metros desde a origem eleita. Do mesmo modo, se V é o observável correspondente à velocidade da partícula, uma pro­priedade pode ser V = 8 metros por segundo. O leitor pode assombrar-se de que se necessite tanta precisão para dizer coisas mais ou menos triviais como que a posição é tal e que a velocidade é qual, mas veremos mais adiante que isto não é em vão.

Resumimos:

O sistema físico está definido por um conjunto de observáveis A, B, C… Para cada um deles se define um con­junto de propriedades A = a1, A = a2, A = a3… B = b1, B = b2…, que representam os possíveis resultados da obser­vação experimental das mesmas.

Diz-se anteriormente que o sistema físico não é mais que uma abstração da realidade e, portanto, um e outra não devem ser confundidos. Contudo, uma das características fascinantes da física consiste em que esta mera aproximação brinda uma perspectiva su­mamente interessante da realidade que pode ser estu­dada em detalhe com teorias físicas até revelar seus segre­dos mais profundos. Por um lado deve-se ser modesto e lembrar que o físico só estuda uma parte, uma pers­pectiva da realidade, mas, por outro lado, pode-se es­tar orgulhoso do formidável avanço que este estudo possibilitou ao conhecimento das estruturas ín­timas do mundo externo à nossa consciência do que cha­mamos realidade.

O estudo dos sistemas físicos se faz por meio de teorias físicas cuja estrutura analisaremos. Mas antes vale a pena mencionar que tais teorias permitem fazer predições sobre o comportamento dos sistemas fí­sicos, e que podem ser comparadas mediante experimen­tos feitos na realidade. Como na história da física os experimentos nem sempre confirmaram as predições feitas pelas teorias físicas, isto motivou mo­dificações nas mesmas ou a inclusão de novos obser­váveis nos sistemas físicos. Por sua vez, as novas teorias físicas permitiram novas predições que requeriam novos experimentos, acelerando uma espiral vertiginosa onde o conhecimento físico aumenta exponenciaImen­te.

Ao intrincado enlace entre a teoria e o experimento, onde o conhecimento gera mais conhecimento, se alude quando se diz que o método da física é teóri­co-experimental. Isto que hoje nos parece elementar não foi sempre assim na historia, já que o método teórico-experimental começou a ser aplicado em princí­pios do século XVII, nessa maravilhosa época de Kepler, Galileu, Descartes, Pascal, Shakespeare e Cervantes, em que a cultura começou a acelerar-se vertiginosamente.

Até então, e desde a Grécia Antiga, a física havia sido puramente especulativa e estava tomada de argumentos teológicos e de pré-juízos que estancaram seu avanço. Ex­perimentos tão simples como o da queda dos cor­pos, ao alcance de qualquer um, foram realizados em forma sistemática somente em 1600, rompendo o pré-julgamento intuitivo que sugere que o mais pesado cai mais rápido. Hoje, quatro séculos depois, muita gente de elevado nível cul­tural compartilha ainda esse pré-conceito. Deste fato assom­broso pode-se tirar conclusões interessantes sobre a deficiente formação em física da população e sua inca­pacidade para observar o fenômeno cotidiano com uma vi­são de físico.

Todas as teorias físicas constam de duas partes: formalismo e interpretação. É importante mencionar isso porque, como veremos mais adiante, a mecânica quântica é uma teoria que tem um excelente formalis­mo, mas carece de uma interpretação universalmente aceita.

Para compreender bem o significado destas partes consideremos, por exemplo, o sistema físico correspon­dente ao movimento de um corpo submetido a certas forças conhecidas. Nossa percepção sensorial nos indi­ca alguns conceitos básicos que participaram no siste­ma físico: a posição do corpo, seu movimento ou veloci­dade e aceleração, a quantidade de matéria do corpo, e também incluímos um conceito mais ou menos intuitivo do que é a força. Estes conceitos básicos são bas­tante imprecisos, mas apesar disso, os combinamos em relações conceituais que têm originalmente uma forma verbal e correspondem a pré-juízos, intuições e observações qualitativas que se revelaram algumas corretas e outras falsas, tais como: "para manter um corpo em movimento é necessário lhe aplicar uma força" (falso) ou "maior força, maior aceleração" (correto). Rapidamente se encontram as limitações que implica uma formulação verbal destas relações conceituais: imprecisão, impossibilidade de comprovar sua validez por meio de experimentos quantitativos, ambigüidade no significado etc. Aparece a necessidade de formalizar, ou seja, de matematicizar a teoria.

Para isso se associa a cada conceito básico um símbolo matemático, o qual repre­senta os possíveis valores numéricos que lhe assinalam segundo o resultado de um procedimento experimental de medição. Por exemplo, à quantidade de matéria se assinala o símbolo m cujo valor se obtém com uma balan­ça comparando o corpo em questão com outros corpos definidos convencionalmente como padrões de medida.

Com estes símbolos, as relações conceituais se trans­formam em equações matemáticas que podem ser ma­nipuladas com o formidável aparato matemático à nossa disposição. Estas manipulações sugerem a criação de novos conceitos, compostos a partir dos conceitos básicos, para interpretar as novas equações obti­das.

A teoria adquiriu um formalismo. Em nosso exemplo, massa, posição, velocidade, aceleração e força, são representadas por m, x, v, a, f, respectivamente, e relacionadas entre si por equações do tipo f = ma. Nestas equações aparecem a miúdo as quantidades mv e mv2/2, o que sugere interpretá-las consignando-lhes o conceito de impulso e energia cinética. Em uma direção, os conceitos são formalizados quando lhes assinalamos um símbolo matemático, e, em outra, os símbolos matemá­ticos são interpretados ao assinalar-lhes um significado que corresponde a alguma característica do sistema físico. O conjunto formado pelos símbolos e as relações matemáticas que os combinam constitui o formalismo da teoria, e os conceitos que lhe dão significado a to­dos os símbolos são a interpretação da mesma.

Interpretação

Conceitos básicos
Conceitos compostos
Significados de símbolos
Relações conceituais

Formalismo

Símbolos matemáticos
Estruturas
Equações
Relações matemáticas

A mecânica quântica ocupa um lugar único na histó­ria da física por ter um formalismo perfeitamente de­finido e vitorioso para pre­dizer o comportamento de sistemas físicos tão variados como partículas elementares, núcleos, átomos, moléculas, sólidos cristalinos, semicondutores e supercondutores etc., mas, apesar dos sérios esforços feitos durante mais de meio século por cientistas de indubitável capacidade tais como Bohr, Heisenberg, Einstein, Planck, De Broglie, Schrödinger e muitos outros, não se conseguiu ainda que todos os símbolos que aparecem no formalismo tenham uma interpretação sem ambigüidades e sejam universalmente aceitas pela comunidade científica. Veremos alguns aspectos do formalismo da mecânica quântica e os graves problemas de inter­pretação que a acusam. Como exemplo do êxito deste formalismo para predizer os resultados experimen­tais, mencionemos aqui seu grande feito.

A mecânica quântica, em uma versão relativista chamada eletrodinâ­mica quântica, permite calcular o momento magnético do elétron com a precisão suficiente para confirmar o valor experimental dado por µ = 1.001159652193 µB. A incerteza experimental é de 10 nas duas últi­mas cifras. O elétron pode ser considerado como um pequeníssimo imã, sendo o momento magnético o ob­servável associado a essa propriedade, e ao que se mede nas unidades expressas por µB , o magneto de Bohr.

Para ilustrar a assombrosa precisão no valor teórico e expe­rimental do momento magnético do elétron, conside­remos que o mesmo é conhecido com um erro de uma parte em 1010, ou seja, 1 em 10.000 milhões. Nenhuma teoria na história da ciência foi confirmada com tal preci­são numérica. Contudo, apesar deste êxito, a mecânica quântica não pode considerar-se como definiti­vamente satisfatória enquanto dela não se obtiver uma interpretação que permita compreender todas as partes essenciais de seu formalismo. Seguramente está se realizando algo de bom, mas não se sabe bem o que é.

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