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O Personalismo de Emmanuel Mounier diante do Existencialismo – parte I

O Existencialismo não é uma invenção dos nossos con­temporâneos, apesar de tal fato não parecer evidente a todos. O grande mérito de Emmanuel Mounier foi o de lembrar as fontes longínquas desta filosofia. Na sua preciosa obra intitulada Introduction aux Existentialismes delineou a árvo­re existencialista cujas raízes se estendem até Sócrates, aos estóicos, a Agostinho e Bernardo. Daí mostrou o desenvolvimento desta filosofia no mundo de hoje, insistin­do com todo o direito na modernidade de Pascal atrás de Kierkegaard, Nietzsche e Heidegger.
Vivemos em uma época turva em que o homem parece haver perdido as chaves do seu universo, e isto, sem dúvida, é que favoreceu o despertar existencialista. Este retorno ao sério, à gravidade, quando não ao pessimismo radical, tem, segundo Mounier, múltiplas causas. O existencialismo é antes de tudo, uma reação contra a filosofia da felicidade. Deus está morto! repetem os existencialistas ateus depois de Nietzsche. Mas, o existencialismo não é somente uma complacência pelo hor­rendo. Os existencialistas cristãos, por sua vez, desejam reen­contrar, por detrás de um cristianismo acomodado, o cristia­nismo autêntico. Por outro lado, a crise contemporânea é uma crise do homem burguês: assistimos ao deslocamento da noção clássica do homem. Claro que larga parte deve ser atribuída também ao desnorteamento nascido das duas guerras mun­diais: a era dos campos de concentração, que viu se generali­zarem as técnicas refinadas do aviltamento do homem é pouco propícia para o otimismo. Enfim, o homem contemporâneo já não domina seu meio: "Seus conceitos, seus instrumentos, seus sentimentos, nada mais dele está adaptado ao mundo que o rodeia, nem é capaz de assegurar-lhe sua soberania." O sis­tema mecanicista fez estalar a armação do mundo, e da desa­gregação do átomo nasceu o terror em muitos homens. Não se crê mais no progresso, na ciência, no humanismo. Os ídolos que substituíam o Deus perdido: razão, Estado, raça esbo­roam-se um depois do outro. É nestas épocas de crise que mais nos interrogamos de bom grado sobre o homem e sobre o sentido do destino humano.

Para Mounier, o existencialismo conheceu duas desgra­ças: esta filosofia séria entregou-se à tagarelice. Tornou-se uma moda designada por si mesma como "o último absurdo do século"; por outro lado, confundiu-se bastante com a fi­losofia do desespero.

Sartre não é responsável por esta confusão, mas, seria de mostrar, como o fez Mounier, que ao lado do existencia­lismo ateu, há um existencialismo cristão cuja história é bem mais longa. Aliás, Mounier observou que o existencialismo ateu escreve, ainda que de maneira desviada e contra sua von­tade, "o comentário da experiência cristã".

Para ele as dou­trinas socialistas ateístas "retomam, empobrecendo-a muitas vezes, a descrição pascaliana desta condição" – a condição humana – "e estas filosofias do engajamento que um Scheler, um Jaspers, um Landsberg, atrás deles um Kierkegaard, à frente Gabriel MarceI e o jovem personalismo francês, há muito tinham desenvolvido antes de excitarem a atenção fre­nética dos cronistas literários".

De fato, se o personalismo não inventou os temas do exis­tencialismo, é força reconhecer que os renovou, colocando-os no centro da sua filosofia, bem antes de nascer a explosão do existencialismo do pós-guerra.

Este breve artigo não será antes de tudo um confronto entre o existencialismo ateu e o existencialismo cristão, mas, se propõe mostrar a posição do personalismo em face do exis­tencialismo, cristão ou ateu. Veremos como o personalismo, cristão ou não, é, muitas vezes, diferente do existencialismo ateu e nem sempre se encontra com o existencialismo cristão.

O personalismo e o existencialismo, de maneira geral, concordam num ponto: a luta contra o sistema. Ambos afir­mam a primazia do existente. De fato, o existencialismo "é uma reação da filosofia do homem contra os excessos da filo­sofia das idéias e da filosofia das coisas". A existência do homem, eis o problema primeiro da filosofia. Tem razão Mounier ao fazer do personalismo um dos ramos da árvore existencialista. O personalismo é uma filosofia da existência, antes de ser uma filosofia da essência. Personalismo e exis­tencialismo não começam por uma teoria do conhecimento que trataria do homem como um ser impessoal. Um e outro pensam que para conhecer o homem é preciso antes de tudo existir plenamente.

O pecado original do racionalismo foi esquecer o homem, afastá-Io da existência. Os filósofos deram-se o trabalho de "desenvolver o mundo como um sistema de puras essências, isto é, de puros possíveis, dos quais, em suma, era indiferente que existissem ou não existissem". Acreditaram, finalmente, que tudo podia ser posto em sistema: é a conclusão de Hegel. Mas, contra tal pretensão levanta-se o não enérgico de Kier­kegaard, que afirma não poder haver um sistema de existên­cia. Mounier o acompanha neste ponto. O espírito que conhece é um espírito existente, não busca a verdade impessoal, mas uma verdade que responde às suas questões. A filosofia não pode ficar estranha ao homem. É preciso que o pensa­mento se faça carne. O problema da morte, por exemplo, é antes de mais nada o problema da minha morte. Na filosofia tradicional, a pessoa que conhece se coloca diante do mundo, que é para ele objeto de espetáculo. O existente está no mun­do. O ser, diz Gabriel MarceI é um "concerto inesgotável". Conhecemo-lo mais ou menos, não podemos jamais possuí-lo como objeto. O ser é o "não-inventariável". O inapreensível não pode ser posto em sistema. Na sua realidade profunda, o ser apenas pode ser aclarado, nunca descrito ou compreendido: porque ele é mistério. E para empregar os termos marcelianos, a primeira preocupação de um pensamento existencial está em não deixar que os "mistérios" se degradem em "problemas".

Nesta perspectiva, diz Mounier, "a inteligência não é neutra". O sujeito que conhece, participa intimamente do obje­to de conhecimento. Enfim, o pensador existencial tem uma consciência aguda do caráter complexo do ser humano. Desconfia de toda exagerada segurança. As harmonias racionalistas o deixam insatisfeito.

Personalismo e existencialismo são duas filosofias existenciais. Começam não por uma aquisição de conhecimentos gerais, mas por uma conversão, uma metanoia, a ser retomada sempre. Primado do existente e exigência de autenticidade são preocupações comuns a estas duas filosofias: "É o lugar central dado à existência como surgimento espiritual permanente, constantemente ameaçado de recair em uma alienação em que a pessoa se esvazia, se atordoa, se engana ou se cristaliza, constantemente arrancada desta sobrevivência inautêntica por um apelo à existência autêntica, liberada e responsável. A isto chamarei o sentido bergsoniano do existencialismo." Mounier ressaltou muitas vezes o fato de que um dos temas mais ricos do existencialismo é a crítica da alienação sob todas as suas formas, do divertissement de Pascal à má-fé de Sartre.

Assim, para estas duas filosofias existenciais, o homem não é alguma coisa abstrata, é um existente, uma pessoa viva e jamais um esquema. Acentuado este acordo, não é de admirar que reencontremos no existencialismo os próprios temas do personalismo. É importante examinar alguns deles.

Antes de tudo, o caráter dramático da condição humana. Ao otimismo burguês sucedeu "um novo mal do século". Aqui encontramos concepções bem diversas desta condição, desde a inquietude saudável ao relaxamento total e, finalmente, à revolta e ao desespero. Os elementos deste trágico são bem nu­merosos. O primeiro deles, a contingência do ser humano. O homem vive situado em um tempo, em um lugar e entre homens. Condicionado limitado de todos os lados.

Se, para o cristão, o mundo e o homem são criados por um ato de amor, não é possível concluir daí que a existência seja perfeita harmonia. O homem encontra-se dilacerado entre um absoluto e sua realidade miserável; pela provação imediata de sua situação concreta, "não pode ele deixar de receber primeiramente o choque transtornante de seu absurdo aparente, de sua solidão frágil e da incoerência das suas descobertas." No entanto, mesmo encontrando a cada passo o mistério, mesmo marchando muitas vezes na noite, o cristão crê que todo existente é um sinal da superabundância do amor de Deus.

O existencialismo ateu, este sim, conclui pela irracionalidade pura, pelo absurdo total. Tal é a facticidade do homem. Aí está o ser, sem razão, estupidamente, para nada. Está sobrando. É preciso, diz Sartre, que "nos lavemos do pecado de existir: Assim falam aqueles que Mounier chama de os "luteranos do ateísmo". Devotaram-se à tarefa de afirmar que o ser é injustificável e absurdo. Resta saber se o método fenomenológico adaptado por Sartre traduz toda a verdade.

Este método descreve as coisas tais como se manifestam à consciência, sem que o sujeito busque, além da aparência, um mundo interior em que possa haurir seu ser: "Quando se tiver dito, escreve Mounier, que a descrição fenomenológica é impotente para nos desvendar todas as dimensões do ser e, notadamente, esta presença da Graça que se revela na fé, ter-se-á restabelecido a atitude total do crente diante da experiência existencional. Se a descrição de Sartre é, para Mounier, preferível ao sorriso de Sulpício e às harmonias leibnizianas, no entanto, continua sendo demasiado incompleta.

Impotência da razão, eis outro aspecto da condição trágica do homem. Tema caro a Pascal. Que existente pode pre­tender conhecer a verdade ou dispensar a justiça? As certezas fáceis não passam de ilusões, a razão se choca com mil obstáculos e se perde, nas trevas. A afirmação unívoca e o laço lógico correm o perigo de trair a verdade, sobretudo no ponto em que o eterno se encontra como tempo. Os meios humanos são impotentes para traduzir estas relações: a verdade só se exprime pelo paradoxo cujo modelo por excelência é o da transcendência: "Toda filosofia existencialista," escreve Mounier, "é por essência uma filosofia dialética. "Seria precioso ainda resolver a ambivalência, sem a qual não há decisão possível, Kiekegaard muitas vezes deslizou na encosta da indecisão, ao passo que Pascal não nega totalmente as possibilidades do espírito humano. Se o conhecimento do existente é limitado, só arbitrariamente poderíamos concluir pela impotência radical da razão. A propósito, diz Mounier: "Algo nos diz ser absurdo que o absurdo exista, que além do mais o absurdo do mundo não é a conclusão de uma pesquisa, mas a expressão de um parti pris não menos deliberado quanto o da razão."

O ser humano é frágil, dividido entre o fracasso e a vitória, a paz e a angústia, dilacerado pelas antinomias. A angústia não é somente a expressão da desorientação. Mais profundamente é "o sinal do sentimento autêntico da condição humana". A opção engrandece o homem, ajuda-o a tornar-se ele mesmo. Porque a opção é também risco, desafio, drama: "Tocamos, a esta altura, em um dos pontos – e há vários deles – em que o patético cristão encontra o patético do absurdo. O cristão e o ateu, nem um nem outro tem o monopólio do drama."

Outro aspecto da dramática existencial é a alienação. Na perspectiva cristã, diz Mounier, não há alienação essencial. Entretanto, o homem é vítima de uma alienação acidental, "aquela que o separa de Deus pelo pecado e pelos efeitos do pecado, da criação inteira e de si mesmo." Mounier, porém, sempre rejeitou certo cristianismo esmagador que justificou, em parte, os violentos ataques de Feuerbach.

A alienação ocupa largo espaço no existencialismo ateu. Sartre tem verdadeira obsessão pela idéia do viscoso, no qual o ser em si ameaça sempre enviscar o para-si. Pergunta Mounier a si mesmo se este sentimento de ameaça perpétua não tem origem tanto no egocentrismo quanto na análise ontológica. A própria obsessão da alienação é a reação típica do paranóico. Talvez até o ser transcendente seja negado só pelo medo da usurpação.

A urgência da morte é outro tema de angústia. Ameaça absoluta para a existência empírica, a morte já não exerce mais domínio sobre a existência transcendente. Para o existencialismo ateu, ao contrário, a finitude do ser humano é absoluta e essencial, um absurdo sem recurso, um fracasso que resume toda a vida.

O existencialismo, cristão ou ateu, reserva largo espaço à solidão do existente. Se são possíveis as relações objetivas da vida exteriorizada, o mesmo não acontece quando se trata da existência absoluta, a existência da fé. Tu es vere Deus absconditus.

Na perspectiva de Heidegger e de Sartre, a solidão do existente é absoluta. Não é uma condição passageira, mas uma estrutura inelutável da existência. Mounier se opõe a esta idéia da prostração total. Por mais obscuro que seja o caminho do existente para a transcendência, há uma voz que responde àquele que chama: "Não será a solidão absoluta um pseudo-conceito, um conceito insustentável, a se alimentar clandestinamente do outro que ele nega como o conceito do nada absoluto?"

A palavra está pronunciada: nada absoluto. É paradoxal que o nada ocupe tanto lugar nas filosofias da existência. Para Sartre: o ser é uma falta de ser. Mas, se a realidade humana é uma falta, é, ao mesmo tempo, um esforço para uma plenitude jamais atingida. Resumindo o pensamento de Sartre, Mounier escreve: "Bem quereríamos o ser em-si, plenitude acabada, mas não quereríamos o ser à maneira de um para-si no surgimento e no progresso. Quereríamos ser deuses: De fato, escreve Sartre: "O homem é o ser que projeta ser Deus. O homem é fundamentalmente desejo de ser Deus." Mas, escreve também: "Tudo se passa como se o mundo, o homem e o homem no mundo; mal chegassem a realizar um Deus frustrado." Assim, nesta perspectiva, a vida só pode ser um absurdo total.

Heidegger e Sartre parecem marcados por uma especial predileção pela angústia irresoluta, pela consciência desgraçada, Podemos até dizer que há neles um sistema do desespero. Heidegger é todo crispação no seu niilismo e nem mesmo deseja dele libertar-se. Reprova a Kierkegaard abrir sua pista tenebrosa para a luz. Sartre conclui que tudo é absurdo. Resultado de uma análise séria, ou produto do temperamento? "Tal raiva contra o ser não seria senão a tradução do ressentimento de ter faltado com o que Gabriel Marcel chama o laço nupcial do homem com a vida?"

Estas filosofias do nada têm certo sentido positivo. São um remédio eficaz contra o otimismo ingênuo e o idealismo enganador. Podem exercer um papel purificador: "Expressões fortes de uma impotência, testemunhas viris de uma decadência, estas doutrinas de fim de século têm, no entanto, a vantagem de nos afrontar, como toda doutrina de crise, a nossa condição dramática."

Para o cristianismo o nada tem também um sentido. Não deixa de ser o primeiro tempo de uma afirmação mais segura. E este abismo de inquietude não deixa de ser uma revelação do absoluto do ser. Tal é o sentido do lugar que ocupa o nada em S. João da Cruz. A angústia faz parte integrante da existência. O próprio desespero tem várias dimensões. Pode ser o prelúdio da esperança. Neste sentido podia dizer Kierkegaard que o supremo desespero é não ser desesperado. Mas, o desespero, e a palavra angústia seria talvez preferível, só é válido quando ultrapassado. Frente ao absurdo fundamental professado por certos existencialistas, a posição de Mounier é categórica: "É absurdo que tudo seja absurdo. Ou então, em termos pascalianos, incompreensível que tudo seja incompreensível. O absurdismo filosófico comporta uma espécie de chantagem lógica. Da maneira como às vezes ele trava o debate parece que só se pode buscar razão ou ser no mundo senão a partir de uma espécie de covardia ou de infantilismo filosófico, e que uma posição só é defensável a. partir do momento em que é insustentável. Acabemos com essas intimidações. Negar tudo não significa mais coragem do que negar menos."

A fé é um desafio e nunca uma segurança. Mas, "o desespero não tem sentido, não é desespero senão por esta fé. Do contrário, de nossa miséria mal teríamos uma satisfação seca e sem dor, dor que não lançaria tantos gritos." É por isso mesmo que GabrieI Marcel pode, sem minimizar o trágico da existência, desenvolver perante o desespero absoluto uma ontologia da esperança. Mounier distingue um desespero fechado e um desespero aberto. O primeiro é rejeição, volta egocêntrica sobre si mesmo, crispação, indisponibilidade. Já o segundo é distensão, abandono, disponibilidade. A esperança é um componente essencial do estatuto ontológico do homem: "Aceitá-la ou rejeitá-la, é o mesmo que aceitar ou rejeitar ser homem."
Já é tempo de resumir a análise precedente. Personalis­mo e existencialismo, ambos insistem no trágico da condição humana. Tal atitude comum, Mounier exprimia nestes termos: "'É o senso dramático da existência humana e de suas perspectivas: a fragilidade do seu ser, a cegueira e o risco de suas crenças, os limites do seu saber, a precariedade das suas instituições, os silêncios do mundo, a solidão dos seres, o sa­bor da morte e do nada que acompanha toda experiência pro­funda: digamos, o tom pascaliano do existencialismo".

Trágico, sim. Mas nunca pessimismo. Mounier empregou várias vezes a palavra desespero. O termo é, talvez, mal es­colhido porque pode se prestar a confusões. Certo que Mou­nier distingue, como vimos, duas formas de desespero. Talvez fosse melhor falar de angústia, de inquietude salutar ou trágica. Retenhamos esta última palavra que traduz melhor o pensamento de Mounier neste ponto preciso. O personalismo faz uma distinção bastante clara entre o trágico e o desespero. Mounier desconfiava de certo "gosto barroco pelas pa­letas sombrias". Quando do aparecimento do primeiro núme­ro de Temps Modernes escrevia: "Sem sombra de dúvida, a posição sartriana revela o máximo de trágico. E nós, busca­mos o drama ou a verdade? (…) Somos os metteurs en scène de uma decadência ou os pioneiros de uma nova idade do homem? Nenhum humanismo ganhou impulso inicial sem certa alegria existencial, o próprio sinal da sua plenitude cria­dora."

A filosofia existencial reservou ao problema do outro uma importância capital quando a filosofia clássica o ignorava quase por completo. O século XIX deu atenção à organiza­ção social, mas não chegou a se ocupar das relações verda­deiramente humanas entre os existentes.

O aparelho social mantém muitas vezes o homem no rol de puro instrumento. Chega a reduzi-Io ao estado de objeto, de engrenagem. A crítica existencialista da alienação tem aqui todo o seu valor. Quanto à comunicação propriamente dita, parece que o existencialismo – o ramo ateu, sobretudo – dela se ocupa simplesmente para demonstrar sua impos­sibilidade, sendo, neste ponto, bem diferente do personalis­mo.
É verdade que o outro não transfigurado é, muitas ve­zes, repulsivo, que a comunicação exterior não conduz ao co­ração de existente. Kierkegaard parece que mal se ateve aos limites da comunicação sem ver-lhe possibilidades reais, o que leva Mounier a escrever com certa graça: "Ele jamais falava dela, a não ser à maneira de certos teólogos que só falam das mulheres para assinalar seus perigos."

Se, para o existencialismo cristão, há sempre por trás dos abismos de solidão entre os existentes uma promessa de reconciliação, para o ramo ateu outro laço não há entre os existentes que o do conflito e o da subserviência: O otimismo social do século XVIII já está morto. Para Heidegger como para Sartre não haveria outra comunidade autêntica senão a do desespero: solidariedade dos remadores de galera amarrados às mesmas cadeias.

Para Sartre, o outro é aquele que me vê, que me objetifica com seu olhar, que me rouba o mundo, me arrebata a liberdade. Posso retrucar fixando, por meu turno, o outro como objeto. Mas, a verdadeira defesa é o ataque. Tenho dois meios à minha disposição. O primeiro consiste em atingir o outro na sua liberdade, em mantê-lo como objeto, a fim de que ele não possa me objetificar. Para Sartre, o amor consiste na posse de uma liberdade como liberdade. Nasce do desejo do outro sujeito. Tal desejo, no entanto, é a vontade de triunfar do outro, e não o prelúdio da reconciliação. Mounier observa que este projeto implica contradição: "Desejo, de fato, que o outro venha enviscar-se na minha liberdade, e que ele o faça livremente, pois eu quero possuí-lo como liberdade. Peço-lhe, portanto, que seja objeto, ao mesmo tempo que o quero sujeito. E, mais ainda, para apreendê-lo como sujeito, é preciso que eu continue objeto para ele, e até objeto fascinante. Mas, deste modo, eu (sujeito) não o apreendo mais como projetara."

O outro sendo inapreensível na sua liberdade, posso objetivá-lo por indiferença. Reajo como se o outro não me olhasse. Talvez ele me coisifique, mas disto já não tomo conhecimento: é uma atitude unicamente defensiva. Resta ainda a comunhão dos corpos. Esta é uma objetivação também. Para me apropriar do corpo de outrem é preciso que eu o despoje de sua liberdade. Mas, a esta altura, já não o posso possuir como sujeito. O outro é, ao fim de tudo, inacessível. Assim se explica a raiva do sádico: humilha a quem não pode possuir.

Para o ramo ateu do existencialismo a comunicação é um fracasso perpétuo: é um dos dramas desta filosofia. Há um "muro" 'entre os existentes, só para retomar um dos títulos de Sartre. Dois existentes são dois seres que se espreitam um ao outro para se sujeitarem, a fim de não serem subjugados. E comenta Mounier: "Homens fixados assim, para sempre, nesta objetivação pela presença do outro é o inferno: vede Huis Clos, onde não poderemos esquecer que o "gene" tem a mesma etimologia de "géhenne". (fr.: tortura)

É notável a análise de Sartre. Contudo, não poderia abarcar todas as relações de existente a existente: "Só a recusamos a partir do momento em que pretende qualquer outra experiência possível e se apresenta como a descrição ne varietur do ser-para-outrem." Mounier retomou a análise de Sartre e mostrou-lhe as lacunas. Para o personalismo não se atinge o outro colocando-o como objeto. Pelo contrário, a presença do outro, ou seja, a aceitação de outrem como um outro diferente de mim mesmo, é o fato primitivo da comunicação.

Acha Mounier que Sartre não levou bastante longe a análise do olhar. O olhar pode gelar, objetivar, fixar o movimento dos seres e das coisas. Mas, não se reduz a isto: "Olhar é a janela mais direta, aberta para o ser pessoal, o caminho central da invocação de pessoa para pessoa. Executor de obras vis, o olhar imobiliza e se apossa. Mensageiro do interior soberano, ele chama e oferece". A visão de Sartre, nota ainda Mounier, lembra maravilhosamente a do perseguido somente atento ao perigo de ser capturado, estranho à idéia de troca.

O verdadeiro mal da comunicação tem sua fonte na rejeição antecipada de se abrir ao outro: o egocentrismo, a indisponibilidade. Encerrando-me em mim mesmo, tornando-me "proprietário", reduzo-me a objeto, torno-me indisponível ao outro. Aqui Mounier dá a solução cristã do problema da comunicação: "… O movimento mais fundamental da espiritualidade cristã é precisamente desapropriar o existente de suas atitudes de posse: em linguagem cristã, a disponibilidade é a Caridade ou já uma predisposição para a Caridade. A disponibilidade é também uma espécie de graça, prelúdio para a Graça. Vamos encontrar aí toda uma dimensão da experiência humana, à qual a obra de Sartre parece tão radicalmente estranha quanto possível."

Desde que nos colocamos em uma atitude de disponibili­dade, toda a análise sartriana sofre uma reviravolta. Pode­mos então falar de admiração, de fidelidade criadora, que "é a presença sempre disponível para outrem". A presença do outro não me congela mais. É, ao contrário, "uma fonte ben­fazeja e, sem dúvida, necessária de renovação e de criação." Não será mais considerada unicamente como uma presença social: "Quem sabe se a transcendência de Sartre, sendo ape­nas projetiva, não chega a ultrapassar o plano horizontal da usurpação." Para Mounier e para todo o cristianismo, a experiência do outro é a experiência do inesgotável, "em uma ex­periência de transcendência com a qual a transcendência sar­triana só tem de comum o nome." O mesmo acontece com o pudor, a vergonha, o desprezo ou o desafio, que muitas vezes são reveladores de uma autêntica transcendência.

O fracasso da comunicação, absoluto em Heidegger e Sartre, dificilmente realizável em Kierkegaard – desde que para ele o existente, no final das contas, só é disponível a Deus – não é total para um Scheler, um Buber, um Gabriel MarceI, um Lévinas. Para estes, como para o personalismo, "a descoberta do nós é estritamente contemporânea da experiência pes­soal." Falta ainda dizer que, de maneira geral, o existencia­lismo tem tendência a mostrar os fracassos, de preferência às vitórias, nas relações entre os existentes. Para ele, a comuni­cação verdadeira "é o limite superior de uma aspiração cujo destino empiricamente termina na desgraça." Para Jaspers, só a comunicação objetiva não é voltada ao fracasso total. Mas nas relações puramente políticas ou econômicas, o existente não pode encontrar a plenitude. Falta-lhe uma verdadeira co­munhão. Ora, o diálogo do existente com o existente é muitas vezes combate e dilaceramento.

Dessa forma, uma filosofia como esta da disponibilida­de muitas vezes apresenta apenas seres indisponíveis aos outros. O drama profundo do existencialismo parece ser a crispação sobre a subjetividade, uma espécie de retorno ao individualismo.

O personalismo que faz do dom-de-si "a metafísica da pessoa", como dizia Mounier, não ignora os fracassos da co­municação. No entanto, acredita-a realizável. O existencialismo cristão a ela não se refere sempre suficientemente. O existencialismo ateu reconhece-a apenas sob as formas do ajuntamento cole­tivo e da solidariedade dos condenados. É bastante clara a diferença feita aqui entre as duas filosofias existenciais. Mounier traça um resumo nestes termos: "Por infeliz que se­ja a comunicação, devido ao dilaceramento do mundo e à nossa indisponibilidade, garantimos a priori o fracasso sem apelação, quando pretendemos a comunicação a partir de uma subjetividade absoluta: deste ponto de partida, não se pode mais passar da solidão à comunicação, nem do pensa­mento ao ser. Ainda aqui o personalismo coloca em tensão primitiva o irredutível pessoal e a experiência original da fra­ternidade. O homem é impotente para harmonizá-Ios de ma­neira duradoura, mas desaparece, se sacrifica uma coisa à ou­tra.
No cuidado da conversão pessoal, personalismo e exis­tencialismo têm preocupações comuns. Gabriel MarceI e Nico­Ias Berdiaeff chamaram a atenção para a solidariedade pro­funda destas duas filosofias neste ponto. Mounier o reconhe­ce igualmente: "O existente humano se apresenta sobre uma estrutura que o constitui em ser pessoal perante a inércia e a impersonalidade da coisa."

E, entretanto, o existencialismo, de maneira geral, nem sempre evitou o fechamento do indivíduo sobre si mesmo. Apresenta, diz Mounier, a imagem de um "personalismo um pouco crispado". A reação contra o impersonalismo das filo­sofias idealistas ou materialistas encerrou muitas vezes o indivíduo na solidão.

Certamente, como observa Kierkegaard, a solidão é ne­cessária ao recolhimento, ao aprofundamento de si, à transfi­guração de toda existência. Jaspers teve o cuidado de distin­guir a ipseidade, unicidade do ser, da subjetividade, fechamen­to sobre si. Toda vida pessoal é uma conquista constante, e é por isso que todo existencialismo desenvolve uma dialética da conversão, que é precisamente a luta contra o domínio do impessoal: divertissement de Pascal, "'estágio estético" de Kierkegaard, vida inautêntica ou mundo do "se" de Heidegger, "ma-fé" de Sartre, "indisponibilidade" e "possessividade" de que fala Gabriel MarceI.

A conversão pessoal consiste, pois, em sair do estágio da indiferença para se recolher, se reaparelhar, aprender a decisão, a opção. O personalismo só pode sentir-se em perfeito acordo, neste ponto, com o existencialismo. Mas, o personalismo insiste na, ambivalência da "interioridade". Não há interioridade sem exterioridade que lhe sirva de apoio e de contrapeso. Interioridade não é ruminação solitária, isolamento egocêntrico; desprezo do impessoal e das mediações sociais. O que chamamos recolhimento é ambíguo e pode desenvolver "uma espécie de abafamento de mim por mim mesmo, que é o perigo próprio de uma vida espiritual demasiado atenta a si mesma." Encerrar o existente em uma solidão altaneira e com ares de desprezo pelas coisas do mundo é um dos maiores perigos do existencialismo. A evidência nos obriga a ver esboçar-se, por vezes, uma volta ao individualismo. Para o personalismo, o recolhimento tem um sentido bem diferente: "Mesmo que comece por uma inadaptação ou por um fracasso, não busca a fuga, mas uma concentração de forças para um melhor engajamento. Nem busca o silêncio pelo silêncio, nem a, solidão pela solidão, mas o silêncio porque nele preparamos a vida, e a solidão porque nele reencontramos o homem."

Com Heidegger, o existente se arranca realmente da dispersão do "se". Mas com ele ainda nos encontramos em "pleno plágio ateu do luteranismo". A conversão pessoal não é, para Heidegger, uma transfiguração, mas uma transparência do existente, uma perfeita lucidez. Não leva a nada. A mesma insuficiência encontramos em Sartre. Se, para ele, o primeiro passo do existencialismo é fazer com que o existente tome consciência de sua liberdade e, conseqüentemente, de sua responsabilidade para consigo mesmo e para com todos os homens, tal liberdade, escreve Mounier, "é o oposto da disponibilidade de Gabriel Marcel. Porque não se abre para nada, não se oferece a nada, é uma liberdade para nada".

Não basta estar de acordo sobre a intenção inicial, a conversão pessoal. Igualmente importante é saber para que fim ela se dirige.

Nota:
A parte II deste trabalho encontra-se na Seção Artigos da RedePsi.

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