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Breves considerações sobre fenomenologia e psicologia

Este texto é o primeiro de uma coluna que tem por assunto os temas fenomenologia e psicologia, suas interações e diálogos. Organizada em seqüência, planeja expor, tanto quanto possível, de modo claro esse método ancorado na filosofia naquilo que compartilha e vem a se delinear na psicologia. Em outras palavras, o que se pretende aqui é apresentar a fenomenologia em sua propriedade, ou seja, enquanto eixo da filosofia, por meio de seus autores e pensamentos principais, com o intuito de se dirigir para aquilo que de mais próximo se avizinha ao universo psicológico, a saber, a Daseinsanalyse.

Para tanto, a coluna deverá dar encadeamento coerente à apresentação do assunto em seus aspectos conceituais e históricos.
O processo é inaugurado pela relação entre Fenomenologia e Psicologia ainda que de forma bastante simples, considerações ligeiras que devem vir a ser trabalhadas mais minuciosamente em notas futuras.

A fenomenologia surge como proposta de nova filosofia, uma filosofia de rigor. Esta “nova” filosofia surge da inquietude de Edmund Husserl (1859-1938) em relação à postura adotada pela psicologia naquela época.

“Nos fins do século XIX, a psicologia gozava de grande prestígio e tendia a converter-se na chave de explicação da teoria do conhecimento e da lógica, retirando essas disciplinas do campo da filosofia. Contra essa orientação, opôs-se o pensador Edmund Husserl, formulando o método fenomenológico e dando origem a um movimento, em torno do qual gravitaria considerável parcela da filosofia do século XX, cujas influências se estenderam a todas as áreas das ciências humanas.” (Loparic, 1980.:1)

Ou seja, o que Husserl criticava era o chamado psicologismo, que se apresentava como fundador das bases de explicação de toda ciência. O filósofo se posicionava de forma antagônica, construindo sua argumentação a partir de indagações, tais que: como pode a psicologia – ciência empírica – fundar-se enquanto base das ciências, uma vez que empírica e, por isso, sensível à concretude das argumentações e carente de ter em si a precisão e o rigor lógico necessários ao suporte daquilo a partir da qual um saber organizado se inicia?  Dizia Husserl que o psicologismo não seria capaz de explicar, por exemplo, os sustentáculos lógicos da teoria do conhecimento.

“O psicologismo, diz Husserl, não consegue resolver o problema fundamental da teoria do conhecimento, ou seja, o problema de como é possível alcançar a objetividade; ou em outros termos, como e possível que o sujeito cognoscente alcance, com certeza e evidencia, uma realidade que lhe é exterior e cuja existência é heterogênea à sua.” (Loparic, 1980. :1)

Esta crítica feita por Husserl tem maior amplitude do que o encaminhamento que lhe foi dado, pois criticar o psicologismo é, de fato, contrapor-se à tendência naturalista vigente, a partir da qual as atividades produtivas teóricas e ideológicas naquele momento tinham início. Assim, o psicologismo viria a ser considerado como um “derivado” do modo de compreensão de homem e do mundo advindo do movimento naturalista, que prega a anulação da dualidade sujeito-objeto, substituindo-a por uma verdade única e inquestionável – a natureza. Dessa forma, tudo passa a ser natural ou físico; a consciência resume-se a eventos psico-físicos; o conhecimento é apenas a ação da estimulação dos objetos físicos exteriores a mecanismos cerebrais e nervosos etc.. A partir desta visão, a teoria do conhecimento, disciplina de rigor teórico pertencente à filosofia, seria uma psicologia e, no caso, apenas uma descrição de comportamento do sujeito humano na atividade de conhecer. (Loparic, 1980)

O que resultava dessa visão unilateral, para Husserl, era justamente uma confusão que viria a conduzir o conhecimento científico à impossibilidade. Tratava-se de um equívoco, no que diz respeito às noções de físico e psíquico, as quais não podem ser consideradas conjuntos de mecanismos cerebrais, vez que se constituem como regiões possuidoras de especificidades e particularidades, conforme admitiu o filósofo. A partir dessa conceituação, Husserl diz ser o psíquico um fenômeno e não uma coisa. Dito de outro modo, ao tratar o psíquico como fenômeno se conseguiria chegar até a consciência, “enquanto fluxo temporal de vivencias cuja peculiaridade é a imanência e a capacidade de outorgrar significado às coisas exteriores.” (Loparic, 1980)

Merece consideração o fato de que a fenomenologia e o método fenomenológico tiveram origem na crítica (do grego kritikós), da capacidade de discernir de Husserl e de sua insatisfação com a superficialidade que os rumos da ciência estavam tomando.  Deste modo, a fenomenologia e o método fenomenológico são fundados como proposta de uma filosofia de rigor, em contraponto às explicações naturalistas do mundo, das coisas, do conhecimento, da consciência e do homem, interpretações de sentido que, para Husserl, não tinham o rigor lógico-metodológico necessários à produção do conhecimento científico e, portanto, não tinham condições de virem a se consolidar enquanto bases para a ciência em geral. Por conseguinte, cabe apresentar a noção de método fenomenológico, que da sustentação à nova teoria, a partir de dois autores, historicamente posteriores a Husserl e discípulos de seu método: Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) e Martin Heidegger (1889-1976).

No prefácio de sua tese de doutorado “Fenomenologia da percepção” (1945), Merleau-Ponty apresenta a fenomenologia de modo bastante claro e resumido, quando elucida a proposta metodológica de investigação escolhida como diretriz de sua obra.

“O que é a Fenomenologia? (…) A fenomenologia é o estudo das essências e todos os problemas, segundo ela, resumem-se em definir as essências. (…) Mas a fenomenologia é também uma filosofia que repõe as essências na existência, e não pensa que se possa compreender o homem e o mundo de outra maneira senão a partir de sua ‘facticidade’. É uma filosofia transcendental que coloca em suspenso, para compreendê-las as afirmações da atitude natural, mas é também uma filosofia para qual o mundo já esta sempre ‘ali’, antes da reflexão, como uma presença inalienável, e cujo esforço todo consiste em reencontrar este contato ingênuo com o mundo, para dar-lhe enfim um estatuto filosófico” (Merleau-Ponty,2006 [1945]. :1).

Quando Merleau-Ponty apresenta a atitude de colocar em suspenso para poder compreender melhor, o filósofo refere-se à suspensão de pré-juizos e pré-conceitos como a forma pela qual pode ser conhecido somente o fenômeno, o que, em suas palavras, também se define por “encontro” não enviesado com o fenômeno ele mesmo, o “contato ingênuo com o mundo” (Merleau-Ponty, 2006 [1945]. :1)

Heidegger, entretanto, interpreta o sentido de fenomenologia a partir da significação etimológica do termo. Fenômeno, do grego phaenomenon, derivado de phenestai, significa mostrar-se. Logo, fenômeno é traduzido ou entendido como aquilo que se mostra, se revela. Ou seja, o que se mostra/revela à luz de uma percepção, a uma claridade de compreensão. Assim, fenômeno é “o que se mostra em si mesmo” (Heidegger, 2005 [1927]. :58). Acrescenta, para compor a sua explicação, outro termo rigoroso, na sua origem, também grega: logos (logia). Logos tem como significado básico, em Heidegger, discurso. Entendido como discurso “O logos deixa e faz ver aquilo sobre o que se discorre e o faz para quem discorre (médium) e para todos aqueles que discursam uns aos outros. O discurso ‘deixa e faz ver’ a partir daquilo sobre o que discorre” (Heidegger, 2005 [1927]. :62/63). Com isso, Heidegger define a fenomenologia como um “deixar e fazer ver por si mesmo aquilo que se mostra, tal com se mostra a partir de si mesmo. É este o sentido formal da pesquisa que traz o nome de fenomenologia (…)” (Heidegger, 2005 [1927]. :65).

É partir desses conceitos que a fenomenologia, enquanto uma corrente da filosofia e, também, na sua relação com a ciência psicológica, será tratada nas linhas que se seguem.

Em meados da década de 1930, um sentimento de insatisfação com as correntes psicológicas contemporâneas – psicanálise freudiana e psicologia analítica – predominava entre os profissionais da área. Basicamente, essa inquietude tinha em vista à interpretação de homem que resultava desses métodos: homem mecanizado e naturalista, dotado de sistemas psíquicos, inconsciente coletivo e pessoal entendidos como instâncias do psiquismo, sendo a falta de compreensão do paciente substituída por sua interpretação excessiva.

A partir deste descontentamento, dois psiquiatras e psicanalistas freudianos, Ludwig Binswanger (1881-1966) e Medard Boss (1903-1990) pensaram a leitura da ontologia fundamental de Heidegger (1927) aplicada à clínica psicológica; dispuseram-se a submeter os princípios do “ser como tal, em sua diferença em relação à totalidade dos entes” (Giacóia, 2006. : 134) aos preceitos da clínica. Com isso, Bisnwanger propõe em 1934 a Daseinsanalyse não como um método clínico de tratamento psicológico, mas como uma fenomenologia antropológica (Gomes, 1986). No entanto, Boss apresenta outra proposta de Daseinsanalyse, voltada à compreensão do homem a partir dele mesmo e para si mesmo, o que se diferencia muito da apreensão de Binswanger, pois dirigiu seu olhar para a interação entre o homem e o mundo.

A Daseinsanalyse, como é conhecida nos dias de hoje, está relacionada à visão de Medard Boss e, como tal, se direciona mais a psicoterapia como uma expressão do ser do homem na busca pelo sentido da vida outrora desviado de seu caminho original de modo a gerar sofrimento, que pode ser trabalhado na clínica.

Referências bibliográficas
 
Giacóia, Oswaldo. Pequeno dicionário de filosofia contemporânea. São Paulo: PubliFolha,2006.

Gomes, William. Influências da fenomenologia e da semiótica na psicoterapia. Disponível no endereço eletrônico: http://www.ufrgs.br/museupsi/semi%F3tica.htm. Acesso em 18/12/2008.

Heidegger, Martin. Ser e Tempo. Trad: Maria Sá Cavalcanti Schuback. São Paulo: Ed. Vozes, 2005.

Loparic, Zelijko. “Husserl – Vida e obra”. In. Os pensadores. São Paulo: Ed. Abril, 1980.

Merleau-Ponty, Maurice. Fenomenologia da percepção. Trad: Carlos Alberto Ribeiro de Moura: São Paulo, Martins Fontes, 2006

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