Seguiremos, nesta terceira parte, o relato do caso Chico Picadinho, em 1994, ele passou por um novo exame de sanidade mental e foi considerado que o seu grau de periculosidade se mantinha no resultado dos exames. Ressaltamos que a periculosidade é algo mutável e dinâmico e pode variar no tempo em função de fatores internos ou externos.Ela está associada à falta de compreensão do indivíduo que infringiu uma proibição legal ou a sua incapacidade de determinar-se de acordo com esse entendimento.Não é entendida como justificativa válida o desconhecimento da proibição, pois a Justiça entende que todos devem saber o que é ou não proibido. Achamos pertinente falar sobre o conceito de periculosidade e sua evolução ao longo do tempo.
Sendo assim, coube à crítica criminológica a tarefa de desconstituir os conceitos prontos de medidas de política criminal, como insuficientes e modeladores de uma realidade posta. Reconhecendo que o meio social é significante na conduta delitiva, que o delinquente não é o anormal diante da normalidade convencionada, que a inconsciência de atos não pode determinar a conduta e a culpabilidade e que o tratamento médico dado à psicopatia é insuficiente e precário, já se tem os moldes de uma nova realidade A partir do momento que criticarmos o que se mostra ineficaz na prática da contenção da criminalidade, realizando uma revisão das medidas adotadas estaremos estudando a fundo o crime, o delinquente e sua conduta. Nas palavras de Carvalho (2008) quando releva a psicanálise como elemento do estudo do crime: “Assim mais do que gerar uma nova disciplina (criminologia psicanalítica), importante alargar os campos de intersecção para sofisticar as investigações dos sintomas sociais e compreender as formas de reprodução das violências e dos processos de criminalização.” (CARVALHO, 2008, pg.212).
As principais teorias psicológicas da criminalidade que hoje em dia dominam a investigação nesta área podem ser agrupadas em duas grandes linhas gerais. Uma delas, centrada na pesquisa das diferenças que caracterizam a dita Personalidade Criminosa, específica do criminoso e determinadora do ato delinquente (Pinatel, Le Blanc).
Uma outra linha seria a de investigação, mais ligada à análise do vivido do criminoso e de seu percurso na criminalidade, partindo de uma abordagem fenomenológica do autor da ação delituosa (Debuyst).
Pinatel (1963 e 1981) defendeu a criminologia clínica como o meio de se estudar os fatores que conduziam ao ato delinquente e a identificar os traços psicológicos subjacentes a este. Defendia que não haveria nos criminosos em geral tipos psicopatológicos classificáveis dentro das categorias psiquiátricas tradicionais, mas, no máximo, conjugações de traços de personalidade, agrupados de uma forma específica. Esses traços é que definiriam, para ele, a Personalidade Criminosa e, esta sim, seria determinadora do comportamento delinquente. Poderemos sintetizar essa posição nos seguintes pontos:
(a) o criminoso seria um homem como outro qualquer, só se diferenciando por uma maior aptidão para a realização do ato criminoso;
(b) a personalidade criminosa seria descrita através de traços psicológicos agrupados numa determinada característica;
(c) essa característica englobaria os traços de agressividade, egocentrismo, labilidade e indiferença afetiva, sendo estes os elementos responsáveis pelo ato delituoso, enquanto as variáveis, tais como o temperamento, as aptidões físicas, intelectuais e profissionais, as razões aparentes e as necessidades seriam responsáveis pelas diferentes modalidades desse ato;
(d) a personalidade criminosa, considerada na sua globalidade, seria dinâmica em relação aos seus diferentes traços constitutivos e adaptabilidade social.
Partindo dessa noção de Personalidade Criminosa, específica de cada delinquente e composta por um conjunto de traços em atuação dinâmica, diferentes investigadores chegaram a resultados diversos e, por vezes, contraditórios. Assim, por exemplo, LeBlanc e Fréchette (1987), estudaram a personalidade delinquente ao longo da infância e adolescência e concluíram pela existência de uma Síndrome da Personalidade Delinquente. Esta comportaria uma estrutura específica com os seguintes sintomas: inclinação criminosa, anti-sociabilidade e egocentrismo, cada um deles sofrendo desenvolvimentos diversos ao longo do tempo.
Numa perspectiva pouco diferente, Eysenck (1977) defendia que o comportamento criminoso é o resultado da interação entre fatores ambientais e características hereditárias. Porém, ele atribui uma importância fundamental a estas últimas e desenvolveu uma teoria bio-psicológica da personalidade. De qualquer forma, ele também acabou defendendo a existência de uma Personalidade Criminosa, composta por um conjunto variável de traços psicológicos característicos do delinquente e responsáveis pelos seus atos transgressivos.
Entretanto, Debuyst (1977, 1981 e 1989), apesar de contestar o conceito da Personalidade Criminosa, tal como era definido e apesar de alegar que este conceito é uma visão ingênua da realidade por ser estática e determinista, não conseguiu se desvencilhar da ideia de uma personalidade inclinada à contravenção. Então, ele recomenda que analisemos a delinquência a partir de três aspectos fundamentais:
1. A posição que o sujeito delinquente ocupa na sociedade;
2. Os processos que resultam de suas múltiplas interações sociais;
3. E as características de sua personalidade.
Ele aceita um aspecto dinâmico da personalidade, consequentemente, considera que a criminalidade não é um fenômeno estático. Dizia que seria ingênuo acreditar que um conjunto fixo de elementos, sejam esses elementos os traços, estilos ou qualquer outro conceito determinista, estivesse na base de todo o comportamento transgressivo indistintamente.
Desta forma, entendemos que não estaríamos diante de um conjunto de traços de personalidade determinantes de uma conduta criminosa e sim diante de uma ação delituosa resultante da interação entre determinados contextos e situações do meio, juntamente com um conjunto de processos cognitivos pessoais, afetivos e vivenciais, os quais acabariam por levar a pessoa a interpretar a situação de uma forma particular e a agir criminosamente ou não, de acordo com o sentido que lhe atribui.
De acordo com novas teorias da personalidade (AGRA, 1986 e 1990; GUIDANO, 1987), seriam sete os sistemas que a constituem: neuropsicológico, psico-sensorial, expressivo, afetivo, cognitivo, vivencial e político. Essa nova tendência reconhece que a personalidade e o ato são inter-relacionados da seguinte forma: a personalidade é a matriz de produção da ação e define as condições e modalidades do agir, enquanto o ato seria o processo de materialização dessa personalidade.
Hoje em dia, alguns autores que pesquisam crimes perpetrados por delinquentes primários e reincidentes, não têm encontrado entre eles quaisquer tipos de déficits ou psicopatologias relevantes para se associar ao que se entende por Personalidade Criminosa ou comportamento criminal, verificando-se, pelo contrário, que esses sujeitos não se distinguem significativamente dos indivíduos ditos normais. Aqui voltamos a questão de que o conceito do Transtorno de Personalidade abrange muito mais aspectos quantitativos do que qualitativos em relação ao que é considerado como uma variação da normalidade.
Entendemos que os comportamentos transgressivos não resultam da incapacidade para agir de outra forma que não a criminosa, como pretendiam os positivistas, nem de uma determinação biológica para só agir desta forma, como acreditavam os deterministas. Os atos, sejam eles delituosos ou não, estariam relacionados com processos da personalidade ao nível da construção de significados e de valores da realidade, bem como com as opções de relacionamento da pessoa com essa realidade. Tal conceito implica na existência de uma estrutura da personalidade que determina certos padrões de ação e certos padrões de inter-relação particular do indivíduo com a realidade, fazendo com que ela aja em conformidade com a visão pessoal que tem da realidade.
Para o estudo da Criminologia Crítica, se torna relevante apontar que o diagnóstico de transtorno de personalidade unicamente, não é determinante para caracterizar a delinquência, podendo haver discrepâncias entre as ações de indivíduos ditos normais e entre os anormais. Não se trata de escusar a conduta delitiva de Chico Picadinho, mas de entender que o fenômeno do desvio criminal, (CONDE e HASSEMER, 2008), é fruto da interação que se produz entre os indivíduos, na qual a propensão ao delito pode surgir de situações favoráveis e desfavoráveis. Como se vê são desfavoráveis todas as condições de educação e amparo social que Chico Picadinho teve em sua história, tanto quando em liberdade e, principalmente no cárcere. Ademais os lugares frequentados por ele e a atitude da vítima também contribuíram para o cometimento do ilícito:
Atualmente é difícil aceitar a existência de uma personalidade tipicamente criminosa, composta por traços imutáveis e pré-definidos de acordo com uma ideia Lombrosiana já ultrapassada. Defende-se sim a existência de diferentes formas de organização e estruturação da personalidade, de diferentes maneiras de integrar os estímulos do meio e os processos psíquicos e de diferentes maneiras de relação com o mundo exterior. Essa estruturação típica e própria da personalidade é que produziria diferentes representações da realidade nas diferentes pessoas e, em função dessa personalidade, as pessoas definiriam também suas diferentes formas de agir e de se relacionar com os outros e com o mundo. Por isso, a importância da Psicologia Criminal e do Psicólogo atuando no Sistema Penitenciário.
Não se pretende negar aqui as contribuições das valiosas teorias da personalidade, a respeito da ideia de uma Personalidade Criminosa, como advogaram inúmeros autores. Nossa ideia é apenas demonstrar que a criminalidade é demasiadamente complexa, afinal de contas o ser humano é complexo e não devemos supor um modelo teórico relativamente simples e fixo para descrevê-lo. Pelas mesmas razões, somos obrigados a questionar o conceito de periculosidade, tal como tem sido definido e, principalmente, as respostas que o Direito, busca na avaliação psicológica, que faculta um prognóstico definido, impossível de ser cumprido dado o caráter dinâmico da personalidade humana.
Percebemos que o Código de Processo Penal está defasado, o que é compreensível e até previsível, após 71 anos de vigência. O cenário nacional, hoje, é completamente diferente do momento em que este Código foi escrito. Segundo especialistas, o extremo da incongruência está nos artigos 26 ao 28 e que determinam a imputabilidade do cidadão. Eles apresentam brechas totalmente contraditórias ao serem aplicados na prática. Na inimputabilidade, é determinado que o cidadão totalmente incapaz de compreender sua ação, no momento do crime praticado, não deve cumprir pena, mas ser encaminhado a tratamento psiquiátrico, ou, no caso do menor de idade, à Fundação Casa. A medida aplicável para o sujeito inimputável, determinada nos artigos citados, é equiparada a uma prisão perpétua, que é a medida de segurança.
De acordo com a exposição de motivos da Lei de Execução Penal – LEP, nº 7210/84, a pena e a medida de segurança devem proteger a sociedade e, ao mesmo tempo, possibilitar “a reincorporação do autor à comunidade”. Nessa perspectiva, a pena deve transcender o aspecto retributivo e proporcionar tratamento penal adequado com o objetivo de ressocializar o preso. Portanto, a LEP mantém o objetivo de garantir a defesa social, mas busca exercer uma intervenção não coercitiva junto ao recluso e que vise a sua reinserção social.
A medida de segurança é a forma legal de tratamento aos doentes mentais que transgrediram a lei. O artigo 96 do Código Penal determina que o tratamento deve ser feito em hospital de custódia e tratamento, nos casos em que for necessária a internação do paciente ou, quando não houver a necessidade de internação, o tratamento será ambulatorial, ou seja, a pessoa se apresenta durante o dia em local próprio para o atendimento, dando-se assistência médica ao paciente. Havendo falta de hospitais para tratamento em certas localidades, o Código diz que o tratamento deverá ser feito em outro estabelecimento adequado, e Presídio não é considerado estabelecimento adequado para tratar doente mental.
A lógica da medida de segurança é de que ela não se constituiria em uma punição ao sujeito, ou seja, não seria uma pena, mas seria garantido o tratamento do doente e a sociedade estaria sendo defendida de alguém perigoso. Portanto, a medida de segurança é um tratamento a que deve ser submetido o autor de crime com o fim de curá-lo ou, no caso de tratar-se de portador de doença mental incurável, de torná-lo apto a conviver em sociedade sem voltar a delinquir.
Segundo o advogado criminal Luiz Guilherme Vieira, o indivíduo permanece por tempo indeterminado em tratamento e passa por exames constantes para detectar a evolução do quadro psicológico.
O presidente da Conamp, José Carlos Consenzo, também se lembra do caso de Chico Picadinho em uma reportagem publicada em 05 de fevereiro de 2010 por Thais Sabino e fala que, mais uma vez, não foi possível seguir o Código de Processo Penal. Como foi relatado em nosso primeiro artigo, em 1966, Chico Picadinho matou e esquartejou uma bailarina e nesta época, foi considerado imputável e condenado à prisão. Após cumprir pena de oito (08) anos, ganhou liberdade por bom comportamento. Dois (02) anos depois, em 1976, matou e esquartejou uma prostituta. Desta vez, foi considerado semi-imputável e foi condenado a uma pena de trinta e dois (32) anos. Percebemos que o tempo de detenção contraria o tempo limitado pelo Código, que é de 30 anos. Ou seja, o Código esbarra no limite máximo de 30 anos para a detenção do criminoso, o imputável, independente do crime cometido. Mesmo diante de uma condenação de 100 anos de prisão, o cumprimento será de no máximo 30 anos. Acrescenta que um dia a mais de pena, denota que o Estado está praticando uma ilegalidade. Foi o caso do “Bandido da Luz Vermelha”, apelido famoso de João Acácio Pereira da Costa, que foi condenado por quatro homicídios e mais de 100 assaltos e passou trinta anos e vinte dias na prisão. Ao final do período, mesmo com os questionamentos sobre seu grau periculosidade à sociedade, teve que ser solto. Foi libertado em 1997 e quatro meses depois o criminoso se envolveu em uma briga e foi morto. Com base no caso, José Carlos Consenzo, afirma que a pena prevê a recuperação do cidadão pelo Estado para o convívio social, o que, evidentemente, não aconteceu no caso e nem acontece no geral. A pena é preventiva, deve mostrar para as pessoas que a prática de um crime gera punição. Além de ser retributiva, ou seja, se alguém tira a vida de uma pessoa, o Estado deve puni-lo e uma das formas de fazê-lo é tirar sua liberdade.
Segundo o diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, Fábio Tofic, após os 30 anos, o sujeito está quite com a sociedade. A única forma de mantê-lo retido é o diagnóstico de algum transtorno mental. Foi o que aconteceu com Chico Picadinho.
Após os 30 (trinta) anos de reclusão, o Ministério Público entrou com uma intervenção civil alegando que Chico Picadinho era um psicopata e apresentava riscos à sociedade e, portanto, deveria ficar detido por tempo indeterminado. Consenzo ressalta que, mesmo depois de cumprir mais de 30 anos, a sentença de “Chico Picadinho” foi transformada em medida de segurança, ou seja, internação para tratamentos mentais. A falha é evidente no que determina a imputabilidade ou não do criminoso: se foi detectado transtorno mental na segunda condenação, mesmo que fosse parcial, o sujeito deveria ser encaminhado para tratamento. O psicopata é semi-imputável, pois, segundo nossa legislação, ele compreende parcialmente o que fez e o crime que cometeu.
Para o desembargador Álvaro Lazzarini, vice-presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, um dos juízes que negaram o pedido de liberdade apresentado pelos advogados de Chico Picadinho. Ele diz que mantê-lo preso é uma forma de protegê-lo e lembra o que aconteceu com o Bandido da Luz Vermelha, que cumpriu trinta (30) anos e vinte (20) dias na prisão e meses após ser libertado, foi assassinado em uma briga de bar.
Lembramos que o prazo mínimo que deve ser estabelecido pelo Juiz que aplica a medida de segurança: é de um a três anos (art. 97, § 1º, do CP), devendo ser estendida de ano a ano. Não foi previsto pelo Código Penal prazo máximo de duração da medida de segurança. Ou seja, para aqueles que recebem tal medida o problema é que não há prazo para sua desinternação. No entanto, como a Constituição Federal determina que no Brasil não haverá pena de caráter perpétuo e que o tempo de prisão não excederá 30 anos (art. 75 do CP) é possível afirmar que a medida de segurança não pode ultrapassar 30 anos de duração. Fato que não aconteceu no caso de Febrônio que permaneceu no Manicômio Judiciário por 60 (sessenta) anos. E também não acontece com Chico Picadinho que já ultrapassou os 30 (trinta) anos em Hospital de Custódia.
Desta forma, ele poderá passar o resto de sua vida cumprindo medida de segurança, caso em que se enquadra o Chico Picadinho, o Bandido da Luz Vermelha, Febrônio Índio do Brasil, famoso por ser o preso de número 00001 da Instituição Manicômio Judiciário do Brasil e que entrou para a história como o primeiro caso de inimputabilidade no nosso país, impossível não citá-lo. O caso de Febrônio terminou em prisão perpétua, pois a medida de segurança, que lhe fora imposta só permitiu que saísse de lá morto, após quase sessenta (60) anos de prisão. Fato bastante semelhante ao que está acontecendo com o personagem principal dos artigos anteriores e deste, Chico Picadinho. Chico Picadinho estará sempre vinculado ao laudo do perito feito depois do exame de cessação de periculosidade. Os pacientes-detentos ficam sujeitos ao exame psiquiátrico para avaliação da cessação da periculosidade, verificação se a pessoa não está mais doente, só então o Juiz da execução penal deverá determinar a desinternação. A desinternação será condicional pelo prazo de um ano. Se nesse período o liberado não praticar fato que indique persistência da periculosidade, estará encerrada a medida de segurança. Ou seja, entendemos que a medida de segurança é a única forma de prisão perpétua que nós temos no Brasil.
Achamos importante citar alguns relatos sobre a história do já citado Febrônio, por suas características semelhantes ao caso de Chico Picadinho. Nascido em Minas Gerais, chegou ao Rio de Janeiro com 14 anos e sobreviveu de práticas ilícitas de menor importância, evoluindo para outras modalidades criminais mais ousadas, como impostor, ao passar-se por médico ginecologista e cirurgião-dentista. Fraudes de diversas ordens e roubos foram ocorrendo até seu caso se tornar famoso a partir do episódio de abusos sexuais e estrangulamento de dois rapazes, um menor de idade, em 1927. Havia, entretanto, registros anteriores de outros dez rapazes que sofreram abuso sexual por parte de Febrônio, que tinha como prática tatuar todas as suas vítimas. Em diversos textos pesquisados foi visto que ele foi preso várias vezes, a primeira aos 21 anos de idade. Febrônio viveu no manicômio judiciário até morrer, em 1984, aos 89 anos, de edema pulmonar e completamente senil. O tratamento fora à base de eletrochoques e fortes medicamentos. Na história do sistema penal brasileiro, foi ele quem permaneceu o maior tempo encarcerado.
Teve sua vida veiculada em um curta-metragem feito pelo cineasta e professor da USP, Carlos Augusto Calil, intitulado O Príncipe do Fogo, que foi baseado no título do seu livro de caráter místico e religioso que ele mesmo escreveu e publicou em 1926: As Revelações do Príncipe do Fogo.
Percebemos a relação do caso de Febrônio com o de Chico Picadinho, pois ele também foi considerado inimputável pela Justiça, destituído de noção de seus atos, encaminhado para internação no primeiro manicômio judiciário do Brasil, inaugurado no Rio de Janeiro, em 1921, que, posteriormente, passou a se chamar Manicômio Judiciário Heitor Carrilho, em homenagem ao seu primeiro diretor (1921- 1954).
Segundo ainda o Ferla (2005), Febrônio foi diagnosticado como: “[…] portador de uma psicopatia caracterizada por desvios éticos, revestindo a fórmula da loucura moral e perversões instintivas, expressas no homossexualismo com impulsões sádicas, estado esse a que se juntam ideias delirantes de imaginação, de caráter místico […]”.
Com essa citação do laudo de Febrônio, gostaríamos de salientar que a entrada e a saída do paciente-detento de um Hospital de Custódia, do ponto de vista legal, se dá mediante a um parecer favorável obtido no laudo psiquiátrico encaminhado ao juiz da Vara Criminal. O “cliente” do Manicômio Judiciário é necessariamente alguém que tenha obtido um diagnóstico psiquiátrico de algum distúrbio, doença ou transtorno mental e que, por conta disto, não foi considerado responsável pelo ato criminoso pelo qual foi julgado. Os casos citados neste artigo, Febrônio e Chico Picadinho, são casos de pessoas inimputáveis ou semi-imputáveis. Ou seja, a capacidade de autodeterminação deles estaria prejudicada no momento do ato criminoso retirando-lhes, portanto, sua responsabilidade (livre arbítrio) pelo ato cometido. Dito de outro modo: a imputabilidade é a base psicológica da culpabilidade. Entendendo-se aí a capacidade de conhecer e respeitar a lei e a capacidade de determinação espontânea (FONTANA-ROSA e COHEN, 2006).
Impôs-se, desse modo, um tratamento diferenciado a Chico Picadinho. O caráter da medida de segurança de mantê-lo privado da liberdade sequer intimida Francisco, pois a inconsciência de seus atos insiste em fazê-lo ser violento. Contudo, sabe-se que esses portadores do transtorno de personalidade antissocial, não aprendem com a punição, ou seja, de nada resolveria deixá-los por anos no cárcere, sem oferecer nenhum tratamento psicossocial, pois, como a experiência mostra, quando colocados novamente em liberdade voltam a transgredir. Isso acontece, por conta de sua natureza impulsiva e falta de limites no que tange as regras sociais, de forma que fica fácil a conclusão que os portadores de transtornos mentais precisam de muito mais do que uma simples reclusão para dar solução aos seus transtornos. Caso de Febrônio, Chico Picadinho e tantos outros. Concordamos que não podemos tratá-lo como objeto, nascido e imutável por sua patologia. Francisco vive como um indivíduo “normal”, embora seja considerado o retrato da anormalidade. Assim como, Febrônio o era.
O estudo da psicopatia como causa de determinação da culpabilidade do indivíduo carece de revisões definitivas. Somente o uso dos conceitos psiquiátricos, aliados ao pouco conhecimento diante da subjetividade da conduta humana transtornada é ineficaz como medida criminológica suficiente de explicação do crime e do delinquente como pessoa. Do mesmo modo o tratamento dado aos portadores de transtorno mental, tanto em caráter preventivo quanto repressivo de seus comportamentos, os condiciona a transgressão quando nega que possam não cometer delitos em liberdade. Reconhece-se o alto custo social da liberdade, diante das potenciais chances de cometimento de um novo ilícito. A simples solução de distanciar do convívio social aquele que traz problemas ao Poder Público como garantidor da paz social é mero simplismo da ilusão de ótica: “aquilo que não se vê, não se sente”.
Cabe lembrar que, embora produzam efeitos sobre a subjetividade, o crime, a reincidência e a periculosidade não são fenômenos psicológicos. Enquanto não compreendermos a criminalidade e seus autores como integrantes sociais e determinados socialmente, embora tenham expressão individual, será difícil conceber ao preso outra personalidade social que não seja a de preso. Assim como, o doente mental sempre será portador de sua doença mental, isto se torna um estigma.
De tudo o que foi relatado pode ser apreendido que indivíduos acometidos pela psicopatia não podem voltar ao convívio social, sem acompanhamento contínuo, porque a punição sofrida não alcança seu objetivo, de maneira que não há reeducação. E é sabido que a reeducação é um dos objetivos da pena, mesmo que raramente seja alcançada. Como consequência, percebemos que, os psicopatas, mesmo ficando muito tempo presos, se são soltos, tem grandes chances de voltarem a cometer crimes. Outra característica de pessoas portadoras do transtorno é não aprender com a punição. O indivíduo pode até ser preso, ficar anos na penitenciária, mas não vai aproveitar esse tempo para “refletir” sobre seus atos, se arrepender; muito pelo contrário, muitos vão aproveitar essa tempo para arquitetar seu próximo crime, quando em liberdade.
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