Entre a síndrome de Capgras e a heautoscopia existe uma surpreendente semelhança. Em ambos os casos o enfermo experimenta a presença de um duplo. O duplo de si mesmo, na heautoscopia. O duplo de outra pessoa, na síndrome de Capgras. As diferenças entre as respectivas modalidades puras de ambos fenômenos psicopatológicos são qualitativas e abarcam múltiplos dados de índole clínica, fenomenológica, genética e nosológica. A descrição psicopatológica, a análise estrutural ou formal, a compreensão dinâmica e a ordenação nosológica representam Ias vias adequadas para captar, respectivamente, os dados diferenciais. Existem, contudo, fenômenos de transição que descreverei sob as designações de delírio dos sósias próprio e heautoscopia delirante. Por outro lado, há alguns trabalhos sobre o heterogêneo gênero do duplo. Rank (1925) dedicou-lhe um estudo psicanaIítico, e Mikorey (1952), uma investigação de base biológica.
Capgras e Reboul-Lachaux (1923) descrevem, pela primeira vez, o fenômeno que consiste em que um enfermo vivencia uma pessoa conhecida de um modo duplo ou múltiplo: esta pessoa é para o enfermo às vezes ela mesma e outras vezes um duplo ou um co-gêmeo idêntico. O enfermo afirma que uma pessoa muito conhecida por ele é um duplo ou um enganador, que tomou a forma de tal pessoa.
O enfermo reconhece que entre o verdadeiro indivíduo e o suposto duplo existe uma incrível semelhança, que com freqüência lhe impede em distingui-los com segurança. Capgras & cols. (1923, 1924 e 1925) aplicam a esta modalidade de falso reconhecimento persistente de uma pessoa conhecida a designação de "ilusão dos sósias".
O sósia, segundo os Dicionários, é uma pessoa que tem tanta semelhança com outra que se confunde com ela. Muitos escritores célebres referiram-se em suas obras ao Mito de Anfitrião, onde Sósias tem um papel secundário. A lenda se refere a uma transformação corpórea dupla. Hermes, filho ilegítimo de Zeus, transfigura-se em Sosias, um servidor de Anfitrião, enquanto que seu pai, Zeus, toma as feições de Anfitrião. Zeus, aproveitando a ausência de Anfitrião, se apresenta a Alcmena, a dos pés encantadores, que o confunde com Anfitrião, seu esposo, e passa uma noite com ele. Zeus fez durar esta noite por três noites. Nove meses depois, Alcmena traz à luz, em Tebas, dois irmãos gêmeos: Ificles, ser mortal inferior ao resto dos homens, que foi engendrado por Anfitrião, e Heracles (ou Hércules), ao mesmo tempo deus e herói grego por excelência, que foi engendrado por Zeus, filho de Cronos e senhor de todos os deuses.
A incorporação à psicopatologia do personagem "Sosias" me parece bem apropriada. Mas o Sosias grego não constitui, contra o critério de Capgras, o objeto de uma ilusão, porém o objeto de um delírio. O fato psicopatológico não se dá na percepção da pessoa conhecida. O enfermo reconhece que esta pessoa e seu suposto sósia são iguais, mas resiste em aceitar que tenham a mesma identidade. Em termos neurológicos poderia dizer-se que se trata de uma agnosia de identificação. Este fato na identificação de uma pessoa conhecida é um produto delirante que pode catalogar-se, conforme o caso, como uma percepção delirante ou uma falsa interpretação deliróide. A descrição primeira de Capgras (1923) se refere também a um enfermo com "delírio sistematizado crônico". Daí que eu me permito substituir o termo: ilusão dos sósias, por "delírio dos sósias".
O delírio dos sósias, ainda que seja pouco freqüente, tem um interesse psicopatológico. De seu estudo se depreende uma série de sugestões frutíferas para o melhor conhecimento de outras alterações psíquicas. A interpretação formal deste raro fenômeno permite aproxima-lo do "falso reconhecimento de pessoas"; tema que figura nos trabalhos de Kahlbaum (1866), Kraepelin (1887), Scheid (1937) e Pauleikhoff (1954).
Esses dois últimos autores nem sequer citam a síndrome de Capgras. A bibliografia existente sobre este tema é escassa. Pauleikhoff refere, apesar disso, duas pacientes esquizofrênicas cujos falsos reconhecimentos delirantes parecem pertencer à síndrome de Capgras. Uma paciente acreditava que seus filhos não eram realmente seus, mas outras crianças trazidas cada dia na Clínica. Que, em lugar de seu marido, vinha vê-la, algumas vezes, um homem de queixo mais largo. Que a pessoa que dizia ser sua sogra, não era realmente a mãe de seu marido.
Pauleikhoff (1954) distingue dois tipos de falsos reconhecimentos de pessoas: o não reconhecer uma pessoa conhecida e o reconhecer uma pessoa desconhecida. A síndrome de Capgras pertence, sem dúvida, ao primeiro tipo, onde o conhecido aparece como desconhecido. Para Pauleikhoff, os fenômenos deste tipo têm o grau de sintomas esquizofrênicos de primeira ordem, no sentido de Kurt Schneider. Assim, tomar por desconhecida uma pessoa conhecida é sempre um desconhecimento delirante.
A separação entre os falsos reconhecimentos positivos e os negativos não têm um caráter absoluto. O mesmo delírio dos sósias pode tomar a forma de um falso reconhecimento persistente de uma pessoa desconhecida. Dietrich (1962) comunica um interessante caso de uma mulher paranóide que tomava por desconhecidos seu marido e seus filhos, atribuindo-lhe a identidade de seus respectivos irmãos gêmeos. Negava-se a ter relações íntimas com o marido porque nunca lhe ficou claro se era ou não o seu irmão gêmeo. Também acreditava reconhecer e identificar pessoas desconhecidas vistas na rua: as crianças eram seus filhos ou os irmãos gêmeos deles (delírio dos sósias baseado no falso reconhecimento de uma pessoa desconhecida); as mulheres eram seu próprio duplo. Este duplo de si mesmo enquanto produto de um falso reconhecimento representa uma modalidade marginal de heautoscopia que tem uma raiz delirante. Esta rara modalidade de heautoscopia se encontra na encruzilhada entre o grupo das heautoscopias nucleares e o delírio dos sósias.
A desrealização pode levar implícita a experiência de estranheza ante pessoas conhecidas. Encontra-as mudadas, alteradas, estranhas. Mas sua identidade continua sendo para o enfermo a mesma de sempre. Não há aqui um desconhecimento, senão uma estranheza.
Outras vivências que podem confundir-se com os falsos reconhecimentos de pessoas são as do déjà vu e jamais vu. A nota psíquica alterada nestas vivências é por vezes a familiaridade do percebido, e outras vezes o falso reconhecimento, positivo ou negativo, de uma situação. Berndt-Larsson (1931) distingue dois modelos de déjà vu: o dos sadios e o dos enfermos: uma pessoa sadia, de repente, durante alguns segundos ou minutos, pode experimentar um determinado sentimento de já ter vivido anteriormente a situação presente com todos os seus detalhes e circunstâncias, precisamente da mesma maneira que agora. O paciente está convencido da realidade de uma vivência anterior idêntica à atual.
Pode, inclusive, localiza-la no tempo e no espaço. No caso do sadio, está alterado o ponto familiar da percepção; no caso do paciente, há um falso reconhecimento de uma situação. A diversidade dos modelos destas vivências é na prática muito mais ampla. Aqui somente estou tratando de expor seu esquema com o objetivo de destacar os dois modelos extremos: o dos sadios, que consiste na alteração passageira da familiaridade da percepção; e o de certos pacientes psíquicos, que consiste no falso reconhecimento de uma situação que pode ter um caráter delirante. O falso reconhecimento delirante de uma situação é um fenômeno análogo ao falso reconhecimento delirante de uma pessoa, e se distribui nas mesmas estruturas fenomenológicas: a da percepção delirante e a da interpretação deliróide. Ambos os modelos de déjà vu se deram na paciente de Dietrich (1962) com a síndrome de Capgras.
Uma particularidade curiosa é a de que a síndrome de Capgras ou delírio dos sósias aparece preferencialmente em mulheres, e a heautoscopia, segundo assinala Menninger-Lerchenthal (1935), em homens.
Arieti e Meth (1959), quando fizeram uma revisão geral da síndrome de Capgras, indicam que esta síndrome pertence, nosologicamente, à esquizofrenia paranóide ou às síndromes paranóides.
Gostaria de acrescentar duas notas:
1ª. O delírio dos sósias, cuja estrutura fenomenológica corresponde à percepção delirante, é com segurança um sintoma esquizofrênico;
2ª. O delírio dos sósias, constituído por interpretações deliróides, pode ser um sintoma esquizofrênico ou um sintoma da série paranóide dos desenvolvimentos ou das reações situacionais.
Em definitivo: o delírio dos sósias não representa uma entidade nosológica, mas uma fábula delirante que pode apresentar-se nas formas paranóides dos processos, dos desenvolvimentos e das reações vivenciais. Comumente consiste, de acordo com a descrição inaugural de Capgras, em outorgar uma existência dupla a uma pessoa conhecida. Mais raramente se apresenta como a superposição de uma pessoa desconhecida de uma falsa identidade que consiste na do duplo ou co-gêmeo de uma pessoa conhecida. Quando esta falsa identidade colocada sobre outra pessoa é a do duplo ou co-gêmeo do próprio paciente, a filiação psicopatológica do fenômeno se encontra na encruzilhada entre o delírio dos sósias (próprio) e da heautoscopia.
Vide:- Artigo sobre heautoscopia na Seção Artigos da RedePsi.