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Gerontologia Sócio-Existencial no Campo Psi – parte II

 

Introdução

Pretendo assinalar a importância capital da psicologia da senectude em termos de experiência humana vivida, ou seja, como particular modificação do modo de coexistência intersubjetiva, que define a estrutura fundamental do ser-no-mundo, como Dasein.

Nesse sentido recordemos à luz das especula­ções fenomenológicas e analítico-existenciais de Husserl, Heidegger, Jaspers, Sartre, Binswanger e seus seguidores, que a vida humana, em seu aqui-e-ago­ra, é, essencialmente, um Mit-Dasein, um "existir com", e transcorre, funda­mentalmente, em uma ordem temporal irreversível. Viver é temporalizar. Existir no tempo. Transcender no tempo. Ou, como disse Ortega y Gasset – é futurizar.

 

Compreensão Existencial da Senectude

A Morte, ao contrário, é eternidade, cessação do devenir existencial, e assim, o reverso da temporalidade em que reside a essência mesma do existir.

Enquanto vivo, o homem se projeta para as suas possibilidades. É, assim, um ser-para-si, em constante transformação e renovação, sob a pers­pectiva de um futuro, que crê estar ainda à distância e que sempre se lhe afigura afastar-se.

Estar vivo significa, por conseqüência, ser capaz de transcender, de modificar, alterar e até mesmo anular, a qualquer tempo, todos os seus projetos anteriores, reformulando-os em direção a novos rumos até não raro, sur­preendentemente contrapostos.

Cada um é sempre aquilo que ele pode fazer ou vir a fazer de si mesmo (como o sentenciam Heidegger, Sartre, Jaspers). E esse poder-de-opção, essa liberdade de escolha – apesar de  nem sempre vivenciada, sob a forma de de­cisão consciente e voluntária – torna-o, sem dúvida,  respon­sável pelo que ele é ou venha-a-ser.

Estar morto, ao contrário, é converter-se, definitivamente, em ser-para-ou­tros. Quer isso dizer que o ser-para-si degrada-se aí ao nível da coisa, do objeto inanimado e solidificado do ser-em-si.

Mas não é tudo. Enquanto vivo, pode o Homem, a qualquer momento, reencontrar-se, vale dizer, coincidir com a sua mesmidade; ou jamais chegar a fazê-Io, por isso que é ele um projeto, que se desloca livremente para o futuro. Somente, pois, a Morte, anulando de um golpe todas as suas possibilidades, obriga-o a ser, daí por diante, aquilo que "ele realmente foi".

A partir de então – no dizer de Sartre – "a sorte está selada."

Liberdade para a Morte

Não poucas vezes, temos ressaltado que o Homem é o único ser da natureza ciente do seu destino, como ser-para-a-morte, apto a discernir o Bem do Mal e, portanto, a decidir dos caminhos de sua con­duta, pela eleição ou rejeição dos valores positivos ou negativos que lhes cor­respondem.

Em suma – o Homem sabe que vai morrer. E, assim sendo, o escolher a vida importa em aceitá-Ia como responsabilidade, outorgando-se, com isso, o compromisso de construí-Ia, de edificá-Ia, na plenitude de sua lucidez e liber­dade.

Substancialmente diversa da existência animal, escravizada à uniformidade dos padrões naturais pré-determinados – mera repetição estereotipada e imu­tável de formas de comportamento, inerentes a cada espécie – a existência humana assemelha-se, antes, sob muitos aspectos, a uma obra-de-arte. Obra que cada qual realiza a seu modo, imprimindo-lhe a força de um estilo todo pessoal, de acordo com o significado que lhe empresta aos entes e às coisas do mundo que lhe é próprio, e ao sabor das diretrizes que se traçou, a partir de sua opção originária.

É que ao Homem, e só ao Homem, assiste, afinal, a liberdade de ser ou deixar-de-ser. O direito à morte constitui, pois, a primeira de suas prerrogativas específicas.

Ainda que, como negação absoluta de todas as nossas possibilidades, a morte representa  uma possibilidade livre de ser. Somente ao Homem pertence o privilégio de optar, a qualquer momento, pela solução extrema e radical ao seu alcance, para todos os problemas e conflitos da existência.

Essa faculdade de fazer coagular, instantaneamente, quando bem o deseje, o fluxo temporal de sua existência, impõe ao Homem a responsabilidade de honrar seu compromisso, isto é, de continuar existindo, apesar do quanto ser-lhe-ia bem mais penosa essa decisão que a de lançar-se repentinamente fora do tempo, truncando o curso de todos os seus projetos existenciais, e convertendo então em nada mais que um torso ina­cabado aquela obra-de-arte, que vinha sendo a sua vida.

Aí está, ao que me parece, o singular significado da tese liberdade para a morte, que Nietzsche desenvolve em seu Zaratustra (Vom freien Tode), e em que volta a insistir, em seu – Crepúsculo dos ídolos. Neste, afirma Nietzsche "por amor mesmo à vida", a morte deve ser, livre e serenamente, escolhida e buscada por quem já esteja seguro dela, à época precisa e desejada, sem in­terferência de acasos, "com lucidez e alegria".

Torna-se evidente, que o ser-para-a-morte (sein-­zum-Tode) de Heidegger, de que deriva e a que se atém a sua denominada angústia existencial, redunda na tese mesma de seu incom­preendido inspirador, ainda que sem aquelas explicitações radicais, para cuja formulação far-se-ia necessário dispor não apenas da força do gênio, o que a ambos não faltava, mas sim, também, da profunda sinceridade, e extraordinária coragem moral, com que o autor de Zaratustra arrostava as mais ousadas e perigosas conseqüências de suas ilações.

Senectude como novo Modo-de-Existir

Chegamos ao núcleo da questão crucial que nos ocupa. É que, de fato, para quem tenha escolhido a vida, sabendo, que em seu avançar incessante para o porvir, estará a caminho do nada imprescritível, a entrada na velhice é já um começo de "entrega", de capi­tulação, diante da grande e inexorável realidade, que se aproxima.

Inútil é agora tentar aturdir-se no turbilhão das agitações cotidianas, deixar-se empolgar pela adoração dos falsos ídolos, dissolver-se, en­fim, no anonimato da existência inautêntica. A pre­sença invisível do nada, de onde viemos e para onde vamos, faz-se sentir, em torno, e cada vez mais nítida e constante, no Lebenswelt (HusserI) da senectude. Por isso, o mundo do ancião, com as coisas reais, os objetos ideais e os valores – em uma palavra, os entes, que o povoam e o constituem – passou a sofrer agora toda uma singular transformação em sua própria estrutura ontológica fun­damental.

É que, para viver, o Homem teve que negar o nada, manipular as coisas e utilizá-Ias, isto é, alimentar-se, vestir-se, proteger-se das agressões da natureza e do próximo, criar, inventar, descobrir o ser dos objetos, ocupar-se e preocupar­-se continuamente. Por isso, o Homem é um ser essencialmente angustiado. Sua angústia é, a um só tempo, afã de viver, de continuar sendo, e terror de deixar-de-ser. Cada obstáculo que surge, cada problema vital que se lhe apre­senta sugere-lhe a imagem do nada e é vivido então como ameaça à integridade e continuidade do ser. É ao que alude Kierkegaard, quando assinala que a an­gústia humana está vinculada ao modo de como "o eu vive a realidade". Daí que, para afirmar o ser, esteja o Homem condenado a manter-se em permanente apreensão e inquietude – estado de tensão, alerta e vigilância assídua, que define a condição do ser-no-mundo, como cuidado (Sorge).

A vida não é, está bem claro, algo estático e tranqüilo, como a superfície de um lago. A vida é algo que flui, ininterruptamente, sempre em busca de si mesma e em direção a um futuro, que se contém em germe no presente, e que nele se antecipa preceden­do-se a si própria.

Quer isso dizer que o vir-a-ser está sempre antes do é, e lhe dá origem. O que é, tão pronto o seja, deixou de ser, já não é mais. Isso nos leva agora a en­tender mais claramente, o sentido daquela tão conhecida proposição de Heidegger, segundo a qual – "o presente é o futuro sido".

Fundamentos Ontológicos da Senectude

Tais são, em suas grandes linhas, alguns dos temas car­deais da moderna Ontologia Existencial, que nos auxiliarão, a levantar um ponto do véu, que encobre a problemática da senectude, deixando-nos entrever, em sua maior profundidade e transcendência, al­guns aspectos essenciais, característicos, do modo-de-ser-no-mundo dos anciãos.

Embora compreendendo haver chegado à última etapa de sua trajetória, o Homem recebe o advento da velhice, não como prenúncio consciente do aniquilamento irrecorrível, mas como uma nova modalidade de existência, a que, ainda assim, precisa e se esforça por ajustar-se. Não ignora por seu estado orgânico, psíquico, e, sobretudo, pela mudança de atitude dos que o cercam, a proximidade em que se encontra de sua extinção biológica inapelável. Percebe a cada passo, que o seu mundo se estreita e se esvazia. Já se foram, um a um, os antigos companheiros, os parentes mais idosos, os amigos mais queridos. E grande já é o séquito de fantasmas, o cortejo de espectros, amáveis ou terríveis, que o envolvem e o acompanham. Sente, dia a dia, que o seu horizonte, outrora amplo e distante, limita-se, mais e mais à sua frente, como para advertir-lhe de que já não poderá estar longe aquela outra limitação, derradeira radical e definitiva – o sempre adiado amplexo dos horizontes, de que nos fala Jaspers. Sabe que algo de ameaçador o vem esprei­tando de mais perto, em cada curva, aos caprichos do acaso ou da fortuna ­um monstro, que se chamará carcinoma, trombose cerebral, infarto, ou não importa que outro nome tenha, mas que, a qualquer momento, acabará por interceptar-lhe a caminhada.

Dir-se-ia que o corredor em que agora penetrou é como a boca de um túnel, em suave declive; a princípio, espaçoso e ainda algo iluminado, mas que se vai afunilando, imperceptivelmente, rumo ao desfiladeiro e, tornando-se então cada vez mais íngreme e escuro, à medida que se precipita em direção ao abismo.

Morrerá só, como nasceu, no dizer de Pascal. E essa solidão, que constitui uma necessidade existencial da velhice, é já, um começo de morte. Porque expressa a quebra da coexistência e da comunicação, que alimentam a tensão vital recíproca entre o eu e a comunidade.

O ancião é sempre, e antes de tudo, um solitário.                                            

Não encontrando entre os que lhe cercam quem comungue dos anseios e aspirações do mundo arcaico a que pertence, é um insulado em meio da mul­tidão. Os jovens emudecem à sua presença. Sentem-se embargados ou inibidos diante dele. Ouvem-no, às vezes, por curiosidade, consideração, respei­to ou complacência. Mas, no fundo, não o compreendem. E, de resto, nada têm a dizer-lhe. Falam uma linguagem que não é mais a sua. Impossível, assim, tentar estabelecer qualquer verdadeiro intercâmbio espiritual entre seres que se expri­mem em idiomas tão diversos. O fenômeno da comunicação repousa justamente naquela ressonância empática recíproca, que está a base do encontro (o Begeg­nung, de Binswanger) e que constitui o fundamento unitário, pré-reflexivo, da compreensão categorial entre dois seres humanos, ligados pelo mesmo aconteci­mento, nas mais diversas conjunturas da existência. Sem essa receptividade afe­tiva mútua, a mais animada conversação logo se descolora. E descamba, in­sensivelmente, para o monólogo enfadonho, ou se transmuda, de repente, em um amistoso "diálogo de surdos". A comunicação é assim, algo essencial, tanto ao em-si, como ao tu e eu da coexistência interumana no cotidiano.

O ancião está só ante o nada. E, por isso, são cada vez mais escassas as suas possibilidades de comunicação com o próximo. A razão pela qual não é levado ao desespero supremo, de que nos fala Kierkegaard, reside unicamente nesta peculiaridade, que é a carência de antecipação, ou seja, a perda da capaci­dade de futurizar a existência, dado psicológico que vale por uma verdadeira característica fenomenológica da ancianidade.

Isso, entretanto, ao mesmo tempo, que preserva e defende a sua persona­lidade, na medida em que lhe tolda a visão prospectiva das coisas e lhe ameni­za a angústia de avançar para o aniquilamento irrecorrível, aumenta e acentua, mais ainda, a sua solidão, posto que o afasta do presente, criando-lhe, por com­pensação, a necessidade de uma temporalização retrospectiva da existência.

Eis aí por que se pode dizer que o ancião vive de reminiscências. Sua exis­tência atual transcorre sob a forma de sucessivos flasch-backs. Os acontecimentos presentes ressentem-se de significação prospectiva e, por isso, lhe servem apenas de estímulo e pretexto às suas constantes e reiteradas memori­zações.

O memorialismo literário é próprio da senectude.

Claro está que a tarefa de reconstituir o passado só pode ser empreendida por quem tenha, afinal, algum passado a evocar. Para o ancião, a vida adquiriu a significação de uma obra já quase concluída. Daí que as autobiografias dos homens ilustres só venham a ser escritas, como é de todo natural, na idade avançada, contingência que seria por si só suficiente para comprometer sua importância, como documento psicológico. Encarnando atitu­de notadamente pessimista em uma injusta generalização, ao insinuar que a velhice, debilitando o processo mnêmico, faria periclitar a fidelidade das reconstituições. Tal observa­ção caberia aos casos de velhice patológica e, ainda assim, diria respeito ao relato dos acontecimentos mais recentes. O passado re­moto pode conservar-se intacto, durante longo tempo, mesmo na demência fran­ca, e, nessas condições, ser reproduzido com relativa precisão.

Nos estados demenciais senis, o que ocorre é a preterização do presente, por efeito de sua dessubstanciação subjetiva. Ao passo que, no ancião mentalmente sadio, o que se observa é antes a presentificação do passado, alte­ração da dinâmica do tempo, relacionada à frustração do vir-a-ser existencial, e que o leva então a refugiar-se no acontecido, em detrimento da hora atual. Há nele uma tendência irreprimível a voltar-se sobre si mesmo e a rever o caminho percorrido, em uma tentativa desesperada de evadir-se para um tempo que lhe poderia ter sido, sob certos aspectos, bem pior que o atual, como às vezes, aliás friamente o reconhece, mas em que lhe sobravam ilusões e esperanças e, sobretudo, em que sabia poder contar com um futuro à sua frente.

Eis aqui o prisma, através do qual se filtra a caracterologia dos anciãos ­essa íntima e amarga "certeza de não se ter um amanhã" – fato que, por sinal, não escapara à argúcia de um observador fino e atilado, como o grande Ramón y Cajal, que a ele detidamente se refere em suas – Charlas de Café e em seu ­El Mundo, visto a Ios Ochenta Años.

O que sabe, que não tem mais futuro em um mundo que prosseguirá tendo o seu futuro, que continuará a existir para os outros, apenas para os outros, equivale a estar virtualmente morto. Esta é, também, exatamente, uma das idéias diretrizes do pensamento de Sartre, acerca da psicologia da morte, tema que desenvolve, com penetrante lógica, em seu célebre – L'Etre et le Néant, e que vem a explorar, de ângulos agudíssimos, ao limite máximo do patético, em duas de suas mais famosas e inquietantes criações literárias – Le Mur e Morts sans Sépulture.

O Homem sabe que vai morrer, mas procede como se fosse eterno. Vive sob a ficção da imortalidade. E, por isso, leva a vida demasiado a sério. Luta, com paixão, por pequenas ou grandes coisas. Regozija-se ou exas­pera-se, ao infinito, com os seus triunfos ou derrotas. Bate-se, com ardor, até o supremo sacrifício, por uma idéia boa ou má, por uma causa qualquer, heróica ou vã, que se lhe apresente. Corre, enfim, com ansiedade, em busca do amor, do prazer, da riqueza, do poder, do prestígio, da liberdade. Até que, súbito, estaca, diante da parede, onde termina a vida. É como se lhe chegasse, neste instante, a revelação estarrecedora de que não era imortal. E compreende então que a sua vida não passara de uma espera sem sentido.

Nota: a parte I foi escrita em artigo de Coluna.

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