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"Heidegger: o princípio da Daseinsanalyse"

A proposta desta coluna é estabelecer, de modo breve mas fidedigno, um terreno sólido ao debate da prática psicológica/clínica daseinsanalítica. A partir desta premissa, esclarecimentos conceituais foram feitos, tendo em vista o acesso aos conceitos e à metodologia de uma corrente filosófica – a fenomenologia – e sua interlocução com a ciência psicologica. Desse modo, o que se pretende alcançar é a exegese da noção primeira da Daseinsanalyse. Para tanto, parece oportuno percorrer o processo que compreende questões existenciais do homem presentes na obra de Martin Heidegger (1889-1976), precursor da análise do Dasein, a saber, Daseinsanalyse.
[left]Nesse contexto, planeja-se não só introduzir alguns movimentos da vida do filósofo, mas, também, apontar terminologia que lhe é peculiar, imprescindível à compreensão da sua obra e da Daseinsanalyse. Buscar-se-á, assim, promover um encadeamento de textos em que o início de um novo é, basicamente, mas não somente, uma continuidade daquele que o antecedeu. É pela retomada de termos na sua identidade original, ainda na filosofia, que se vai alçar o seu enovelamento com a psicologia. Mais especificamente, por meio da leitura feita por dois psiquiatras – Medard Boss (1903-1990) e Ludwig Binswanger (1881-1966) – de [i]Ser e Tempo[/i] (1927), de Martin Heidegger. Tem-se, como perspectiva, uma série de três exposições com o objetivo de projetar o encadeamento da Daseinsanalyse à concepção heideggeriana e à visão da psicologia clínica.

Para iniciar, ousadamente, far-se-á uso das palavras com que Heidegger fez referência a Aristóteles no início de uma conferência sobre o pensador, agora transmitindo-a a ele próprio: “[i]Ele nasceu, trabalhou e morreu[/i].” (Safranski, 2005, pg. 27). Essa tríade faz ver que a vida de Heidegger e sua filosofia, ou melhor, sua fenomenologia hermenêutica da existência do homem, ao menos em um primeiro momento – aquele a que se reporta aqui -, evidencia um conjunto de três ações – vir ao mundo, atuar no mundo e deixar de existir no mundo – as quais se delineiam de modo independente, mas, ao mesmo tempo, intimamente conectadas. Heidegger nasceu em 26 de setembro de 1889, no frio vilarejo de Mersskirch, interior da Alemanha. Filho de um zelador de objetos sacros e sacristão da paróquia da cidade e de uma camponesa simples, o pequeno garoto é também filho de Mersskirch e é para lá que sempre tem vontade de voltar (Safranski, 2005, pg.28). Em outras palavras, as idéias heideggerianas e a sua vida são coplanares. Vive em meio à sombra da igreja e do catolicismo, por extensão familiar, e deixa ver sua constante vontade de retornar à sua terra natal, seu lar. Em seu pai há a personificação desse corpo doutrinário e, sem mesmo saber, o pequeno Martin contém em si o encerramento de uma briga clérico-territorial de gerações, sujeito a simples ato do acaso, qual seja, receber a chave de uma igreja.

Em 1870, período quando efervescia o nacionalismo na Alemanha, o Concílio de Roma postula a infalibilidade do papa. Muitos católicos quebram os efeitos desse dogma, manifestando-se contra as posições polares, isto é, demasiados “romanos” ou estadistas em primazia. Muitos dos habitantes de Merrkisch colocaram-se na posição de “romanos”, acordados com o Concílio de Roma, e apenas um dos moradores do povoado, colocou-se como um “antigo”. O pai de Heidegger se conservou, ou melhor, manteve-se em correspondência à tradição. Por isso foram alvo de retaliações culturais e de preconceito, sendo vistos como pessoas de mentalidade pequena, causadoras de prejuízo ao desenvolvimento do povoado. Marco do primeiro contato do garoto Martin com o embate entre “modernidade” e “tradição”, o acontecimento que futuramente se reflete em sua filosofia, em suas concepções sobre o antigo e o novo, enquanto, também, dimensões da temporalidade estrutural do homem. Em vida, Heidegger ultrapassa essa situação quando, em meio a uma brincadeira na praça, a chave da igreja lhe é entregue pelo antigo sacristão local, tendo como destino as mãos de seu pai. (Safranski, 2005). A circunstância, o ato e a chave assumem sentido relativo e transmutam-se em o símbolo da superação como sinal de confluência entre as duas posições religiosas.

Desde então, Heidegger e a igreja passam a conviver de modo muito próximo e ambíguo. Na qualidade de membros da classe média baixa, os Heidegger custearam os estudos de seu filho Martin a partir da colaboração da igreja, que, por sua vez, colocava essa possibilidade à disposição por ver, no pequeno garoto, potencial intelectual. Com isso, seus estudos seqüenciais, a partir da escola primária, são direcionados ao internato católico de Constança, desígnio de preparação de um futuro padre. Mediante tal modelo de custeamento, sua formação foi seguida até o inicio de sua vida adulta.

Em regime fechado no seminário de Constança, o jovem Heidegger vê-se, um pouco deslocado daquela forma de pensamento dogmático e cristalizado em diferentes situações. Começa a questionar acerca da severidade do internato, do clima pesado e desagradável desta situação em contraponto à tranqüilidade fluída da vida além daqueles muros. Mais tarde, conforme Safranski (2005), esta comparação vem a ser a causa, a origem, dos conceitos de [i]impropriedade e propriedade[/i], que mais adiante serão apresentados, porquanto, na Daseinsanalyse, são fundamentais. Esse embate pode ser notado, novamente, na articulação entre tradição dogmática (Constança) e a modernidade (mundo exterior), o que passa a ser visto com outros olhos por Heidegger

Em Heidegger, essas transformações no modo de compreender a sua vida são constantes e bastante seqüenciais. Por associação à Rilke (s/d.) sê é levado a dizer que Heidegger viveu suas interrogações; amou “(…) [i]suas próprias dúvidas, como se cada uma delas fosse um quarto fechado, um livro escrito em idioma estrangeiro[/i]” (pg. 30). Sua insatisfação em relação às formas de pensamento da igreja e da escolástica passa a ser cada vez mais evidente e acentuada após sua mudança de Constança para Freiburg. (Safranski, 2005). Heidegger foi afastado da formação de sacerdote por problemas cardíacos, mas revive seus estudos na teologia. Entretanto, em um dado semestre de sua graduação, Heidegger, de férias em Merrkish, se dedica com afinco à leitura de Brentano. Franz Brentano (1838-1827) era professor de Husserl e, assim, também iniciador da fenomenologia. Encantou o jovem estudante de teologia pelas indagações a propósito dos [i]modos-de-ser-de-Deus[/i] e, em especial, pelo modo como essa investigação era conduzida. (Safranski, 2005)

Por meio de Brentano, Heidegger chega a Husserl e às “[i]Investigações Lógicas[/i]”. Apaixona-se pela obra, pelo autor e pela forma de pensamento – fenomenologia -, tomando-a por empréstimo da biblioteca de Freiburg durante 2 anos. Por volta de 1916, o encontro com Husserl acontece e, em pouco tempo, o mestre passa a tratá-lo como seu discípulo; como um “iniciado” na fenomenologia, capaz e considerado seu auxiliar na edificação dessa nova filosofia. “[i]Assim Husserl caracteriza o jovem Martin Heidegger, a quem entrementes considera seu discípulo mais talentoso, e a quem trata quase de igual para igual como colaborador no grande projeto filosófico da fenomenologia.[/i]” (Safranski, 2005, pg.101)

Ao conduzir prosseguimento deste trabalho para os meados dos anos 20, propõe-se um salto cronológico de quase 10 anos, apenas por razões didáticas, tendo em vista alçar o prelúdio de Ser e Tempo, sem desprezo à evolução e à maturação das idéias do filósofo no tempo transposto.

“[i]Façamos uma retrospectiva: segundo o modelo teológico, Martin Heidegger começara como filosofo católico. Seu pensar movia-se em circulo na indagação por Deus como pedra fundamental e fiador de nosso conhecimento do mundo e de nós mesmos. Heidegger, vinha de uma tradição que só podia ainda afirmar-se defensivamente contra uma modernidade para qual Deus perdera seu sentido. (…) O pensar metafísico não conta com a imutabilidade do ser humano, mas com a imutabilidade das relações de sentido. Heidegger aprendeu com Dilthey que também as verdades têm a sua historia. (…) A idéia de Dilthey ‘de que sentido e importância só surgem no homem e sua historia’ se tornou seu critério. (…) Depois de 1918 a vida histórica se torna fundamento do filosofar para Heidegger. (…) O filosofar de Heidegger, volta-se para a treva do momento vivido.[/i]” (Safranski, 2005, pg.185/186)

O movimento natural que envolve a vida e o pensamento de Heidegger entre os anos de 1923 e 1927 faz nascer [i]Ser e Tempo[/i]. (Safranski, 2005) Esta obra abre as portas para a inserção fenomenológica na psicologia e, mais tarde, na clinica. Retomando referência anterior, a leitura feita por dois psiquiatras vem colocar em uma ordem diferente e nova a concepção de ciência psicológica da época. [i]Ser e Tempo[/i] propõe a retomada a questão metafísica primeira considerada por Heidegger, em face da forma como vinha sendo tão erroneamente tratada, esquecida: o perguntar-se acerca do ser. Isto dito, vale perguntar como numa questão ontológica (ciência que estuda o ser), a psicologia, ciência humana por definição de objeto de estudo, passa, do empírico da vivencia subjetiva, para a densidade de um problema filosófico? Ou ainda: como e por que a psicologia faz uso de uma obra de tamanha densidade filosófica em algum momento de sua prática clínica? A resposta emerge da própria obra de Heidegger: o acesso que permeia investigações acerca do ser é conseguido quando aclaradas as estruturas mais fundamentais do estar-lançado-para-fora (ek-sistencia) do ente homem. Rapidamente, um simples, mas não displicente esclarecimento a propósito das noções de ser, ente e existência configura-se oportuno. [i]Ente[/i] é. Ou seja, tudo aquilo que está no mundo, o compõe. [i]Ser[/i] “é” – o uso das aspas se deve à dificuldade lingüística de determinar o ser como…, pois feito isso, o estatuto da entifição lhe é dado, e justamente Heidegger exerce essa critica a toda tradição da filosofia, daí o velamento da ontologia, isto é, das causas do ser e de seus atributos essenciais, conforme já foi mencionado – o absolutamente “não-é”, aquilo que se manifesta no ente. [i]Ek-sistencia[/i]/[i]existência[/i] deriva de existir. Existir, por sua vez, deriva do grego [i]ek-sistere[/i], enraizado no termo ekstasis, compreendido como colocar-se para fora, projetar-se no espaço, conservar-se na abertura. (Heidegger, 2005 [1927]).

Após essa digressão, volta-se a Heidegger, que elege o homem dentre todos os entes como via de acesso ao questionamento acerca do ser . Esse estatuto lhe é conferido devido à sua intima e intensa relação com o ser, um transito em meio a suas manifestações diversas. Sua concepção de homem é muito peculiar e faz completo sentido diante da eterna mutabilidade das condições humanas, principalmente existenciais, as quais, em ultima análise, são e estão intimamente interligadas ao psicológico. O filósofo faz referência a esse ente justamente por sua relação mais próxima com o ser; [i]Dasein[/i].

“[i]Da-sein, junção de dois termos da lingua alemã; da, traduzido ao português como aí, e sein, ser. Ou seja, desta combinação lingüística deriva o termo da-sein, ser-aí. Para Heidegger, o ser-aí existe em função de si mesmo, posto que é o guardião de seu próprio ser; o cuidado e sua própria existência. Desta forma, Heidegger trata da-sein de forma impessoal, colocando-o como representante do questionamento acerca do ser do humano. “(..) Mas o Dasein é-nós mesmos, a cada vez. Decerto, mas nós mesmos precisamente apenas enquanto somos aqueles aos quais o ser diz respeito. Ou ainda: o Dasein é e não é o ‘homem’. Ele não é: Dasein permite reduzir todas as definições tradicionais do homem, animal racional, corpo-e-alma, sujeito, consciência, e questiona-las a partir deste traço primordial, a relação com o ser. Ele o é: Dasein não é ‘outra-coisa’ senão o homem, um outro ente, trata-se de nós mesmos, mas nós mesmos pensados a partir da relação com o ser, isto é, com nosso ser próprio, com o das coisas e dos outros. Dasein diz a humanidade do homem como relação com o ser. (…) A existência (…) é o modo de ser do Dasein[/i]” (Dubois, 2004.:17).

[i]Dasein[/i] não é masculino e nem feminino, Dasein é a relação do ente humano com seu ser, com sua essência, a própria existência de fato. Isto é, enquanto o ser-aí é existência não o é delimitado e nem simplesmente dado ([i]vorhandenheit[/i]) é, por conseguinte, um sucessivo dar-se no vir-a-ser, um sistema auto-poiético de criação, a saber, aquilo que constrói e é construído concomitantemente. Logo, [i]Dasein[/i] é existência, uma delimitação ontológica de sua própria qualidade de ente detentor da significação de seu ser. Em outras palavras, o ser-aí ao portar a significação de seu ser carrega também sua existência de modo livre, de modo a ser capaz e ver-se na necessidade de concretizá-la em meio à admissão de possibilidades de ser diversas.

Com isso, pode-se dizer que o ser-aí se constitui como, justamente, o próprio aí do vocábulo adaptado da língua alemã, uma abertura ao/para o mundo e às possibilidades de manifestação de seu ser dentro desta cadeia de múltiplas relações e significações (Heidegger, 2005 [1927]). Desta forma, ao se dizer que não é simplesmente dado e nem mesmo delimitado em um sistema, dito foi: Dasein se constrói ao mesmo tempo que é construído no contexto em que se insere, e não se coloca como um ente circunscrito em um dado número de possibilidades, mas sim no infinito delas, posto que existe.

Em Dasein, Heidegger concebe a ligação entre o ser, ente e o modo de acesso às beiradas do primeiro. Foi justamente nessa brecha que os leitores Medard Boss e Ludwig Binswanger se ativeram, posto que o homem é inesgotável em suas possibilidades, e possibilidade é [i]condição-para[/i]… o que, de antemão, implica em uma não cristalização, visto que se trata de uma abertura ao incerto. Logo, a mobilidade das conceituações de [i]Ser e Tempo[/i] convém ou vem a propósito da insatisfação com os constructos teórico-metodológicos da ciência psicológica dos anos de 1930, onde vieram a se inserir os psiquiatras referidos.

O modo de pensar de Heidegger e sua aplicação do método fenomenológico em Ser e Tempo, é o que imprime o novo na perspectiva psi, que, até então, dava ares de um limitado quebra-cabeças entre o humano e a teoria, quando alimentava a eterna tentativa de fazer caber peças em moldes acabados.

“(…)[i] a forma do pensamento heideggeriano é concêntrica, possuído certa semelhança com a forma socrática de exposição, onde o pensamento circular não chega propriamente a nenhum lugar derradeiro, porém está sempre e constantemente indo a algum lugar, circundando a questão de maneira a favorecer continuamente novas perspectivas e exigindo do interrogante estar proximo à questão e ser também interrogado por ela.[/i]” (Rehfeld, 1988, pg. 87)

A citação sintetiza a possibilidade do [i]estar-tocado-por[/i]… , concepção que não se refere ao chegar a nenhum lugar derradeiro e a certa localidade, mas, sim, problematiza a forma como ela mesma, por si só, vem a se consubstanciar como uma questão a um que responde para outro.

Tem-se em mente, em uma próxima vez, aclarar, ou ainda, particularizar a analítica do Dasein, a Daseinsanalyse de [i]Ser e Tempo[/i], sua relação com Medard Boss e sua Daseinsanalyse psicológica, de modo a tecer mais um trecho da teia de segurança que se pretende para chegar efetivamente na psicologia e ao diálogo que estabelece com a fenomenologia heideggeriana.

[b]Referências bibliográficas[/b] [b]Dubois, Christian[/b]. Introdução à leitura de Heidegger. São Paulo: Ed. Jorge Zahar, 2006.
[b] Heidegger, Martin[/b]. Ser e Tempo. Trad: Maria Sá Cavalcanti Schuback. São Paulo: Ed. Vozes, 2005.

[b]Rehfeld, Ari[/b]. À angústia In: Vida e Morte. São Paulo, Ed.Companhia Ilimitada, 1988.
[b] Rilke, Rainer M[/b]. Cartas a um jovem poeta. Introdução e tradução de Fernando Jorge. São Paulo, Hemus – Livraria e Editora Ltda., sem data,
[b] Safranski, Rüdiger[/b]. Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal. Ed. Geração Editorial, 2005.[/left]

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