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A esquizofrenia e a arteterapia como forma gestáltica de intervenção.

Introdução

A odisséia de atender clientes com diagnóstico de esquizofrenia é uma tarefa realmente extra-ordinária. Seu encanto, suas peripécias delirantes é um convite ao imaginário.

Esta rica prática psicoterapêutica traz diversas experiências, sensações e aprendizados, das quais não poderia deixar de citar: humildade e pequenez.

Entretanto, ao realizar este tipo de atendimento o psicoterapeuta se vê limitado quanto à intervenção psicológica verbal[1]. Diante disto, se vê a procura de outras formas e técnicas de intervenção para que o cliente possa integrar-se.

A Gestalt-terapia enquanto terapia de contato, se utiliza de diferentes maneiras, formas que podem ser consideradas recursos valiosos para possibilitar a integração do indivíduo. Neste intuito a Arteterapia nos apresenta uma proposta extra-ordinária, pois possibilita ao cliente um processo quase que "auto-integrador".

Com a intenção eminentemente prática procuro expor neste artigo um breve caminho teórico, entre a esquizofrenia e a Gestalt-terapia, e a Arteterapia com a Gestalt-terapia, para que simplesmente se tenha nota deste tipo de intervenção.

Não me preocupei em teorizar de forma a esgotar os conteúdos no que tange o funcionamento psicótico, pois nossos colegas MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO; VIERA; e SANTOS já o fizeram com maestria; muito menos no que se refere à Arteterapia.

Escrevo este artigo, pois durante um atendimento com um cliente que estava esquizofrênico, encontrei-me limitado no setting terapêutico, foi então que busquei formas alternativas para que o próprio cliente se integrasse. Quando busquei auxílio na comunidade científica[2] constei escassez de artigos e livros que abordam a prática da psicoterapia individual em clientes com diagnóstico de esquizofrenia.

Portanto, busco assim proporcionar ao colega psicoterapeuta uma alternativa à altura, no que tange a prática psicoterapêutica individual com clientes que estão esquizofrênicos.

Esquizofrenia e gestalt-terapia

Esquizofrenia, do grego, esquizo = "cisão", e frenia = "mente", é um dos transtornos mentais considerados mais graves que existe, afetando cerca de 1% da população mundial. Normalmente se manifestando no final da adolescência ou no início da vida adulta tanto nos homens como nas mulheres, podendo também ocorrer – porém mais raramente – na infância ou na meia-idade (Organização Mundial da Saúde, 1998).

Conforme o DSM-IV (2003) – Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais, publicado pela Associação Americana de Psiquiatria (APA) – a esquizofrenia é uma patologia que tem características essenciais da presença de sintomas psicóticos, como alucinações, dissociação do pensamento, delírios, comportamento desorganizado ou catatônico e embotamento afetivo. Esta patologia apresenta sinais e sintomas na área do pensamento, percepção e emoções, prejudicando o indivíduo nas áreas ocupacionais, cuidados pessoais, e nas relações interpessoais e familiares.

Na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10), a esquizofrenia é classificada como F20, caracterizada pelos principais sintomas importantes para classificá-la como tal: o eco do pensamento, a imposição ou roubo do pensamento, a divulgação do pensamento, a percepção delirante, idéias delirantes de controle, de influência ou de passividade, vozes alucinatórias que comentam ou discutem com o paciente na terceira pessoa, e transtornos do pensamento e sintomas negativos.

Sua evolução pode ser episódica com ocorrência de um déficit progressivo ou estável, contínua, ou comportar um ou vários episódios seguidos de uma remissão completa ou incompleta (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 1998).

A esquizofrenia na visão da Gestalt-terapia, não é tratada como uma doença, pois nos ajustamentos psicóticos também há um intenso trabalho de criação na fronteira de contato. Também é um ajustamento criativo (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2008).

Vicentini (2007), afirma que, no conceito de fronteira do "eu" que envolve a percepção do indivíduo do que está dentro ou fora do corpo, é onde o ajustamento psicótico apresenta dificuldades, pois projetam no exterior conteúdos internos. É possível perceber uma fronteira de contato muito rígida, devido às suas vivências internas serem tão intensas que podem interpretar o contato como uma ameaça a sua integridade física.

Todo enrijecimento da fronteira de contato ou estreitamento dela, está ligado ao medo. No caso dos psicóticos, esse enrijecimento ou estreitamento se dá ao pavor, podendo levar a reações inesperadas ou exacerbadas chegando até a agressão física. (VICENTINI, 2007).

Tomando como norte o ciclo do contato, a esquizofrenia parece estar nas disfunções mais comuns correspondentes à função id do self, sendo a fixação (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2008), a deflexão e a dessensibilização. E no processo figura-fundo, a figura não está clara emergindo do fundo, ou vice-versa. Há uma confluência no processo figura-fundo (VIEIRA, 2010).

Nos ajustamentos psicóticos, o indivíduo tem dificuldades em perceber seu senso de integridade, de perceber o que é e o que está dentro ou fora de sua fronteira. Sendo assim não consegue manter espontaneamente contato consigo mesmo e com o mundo a sua volta de forma "auto-reguladora" com a função de reencontrar seu equilíbrio (VICENTINI, 2007).

Portanto, busca-se no cliente psicótico o funcionamento saudável e equilibrado, para que o indivíduo possa identificar suas necessidades e diferenciá-las do meio ambiente; responder satisfatoriamente suas necessidades, fechando processos, se transformando e novamente se abrindo para novas possibilidades de crescimento e desenvolvimento saudável, dentro de seus próprios limites (VIEIRA, 2010).

No que tange à conduta do terapeuta, Vieira (2010) afirma que

"[…] o resultado esperado no tratamento […] deverá levar em consideração as especificidades desse paciente, seus limites, seu contexto e sua realidade. Assim, o terapeuta não vislumbrará somente a possibilidade de cura, mas, antes de tudo, a possibilidade desse indivíduo se organizar dentro da sua sintomatologia, tornando-se responsável por si mesmo".

Santos (2005, apud VIEIRA, 2010) salienta que é muito importante a confirmação referente à validação da experiência (como possível, real e autêntico) do cliente, tanto quanto a presença do terapeuta no processo terapêutico, para que assim, busque estabelecer uma relação terapêutica com objetivo de resgatar as relações de confiança, por menores que possam ser.

Diante destas condições, o terapeuta tem dificuldades para realizar um trabalho com clientes psicóticos somente através do diálogo. Destarte, o Gestalt-terapeuta pode utilizar da Arteterapia como técnica integradora.

Através da Arteterapia, o Gestalt-terapeuta oferece a possibilidade da expressão da realidade, da comunicação e do contato com pensamentos, sensações e emoções. A criatividade toma conta para dar uma nova "boa forma".

"Ajustamento criativo e contato são conceitos-chave na Gestalt-terapia, pois implicam não apenas "ajustamento", mas "ajustamento criativo" e não só em "contato", mas "contato criativo"." (CIORNAI, 2004, p.58)

Arteterapia e gestalt-terapia

A expressão visual tem sido usada como fator de cura através da história, porém somente em meados de 1940 que foi reconhecida como profissão. A Arteterapia é uma profissão da saúde mental que utiliza o processo criativo da arte de expressar, para melhorar e aperfeiçoar o desenvolvimento físico, mental e emocional, objetivando o bem-estar dos indivíduos de todas as idades. É baseada na crença de que o processo criativo envolvido na auto-expressão artística, ajuda as pessoas a lidar melhor com seus conflitos e problemas, a desenvolver habilidades interpessoais, conscientizar comportamentos, reduzir estresse, aumentar auto-estima, desenvolver auto-consciência, e ter insights (AMERICAN ART THERAPY ASSOCIATION).

Segundo Ciornai (2004), "Arteterapia é o termo que designa a utilização de recursos artísticos em contextos terapêuticos." (p.7) É o trabalho de profissionais que utilizam as artes plásticas como recurso terapêutico, também chamado de "artes em terapia" ou "terapias expressivas", diferentemente do termo "artes" que se refere de modo geral a diversas linguagens artísticas.

Liebmann (2000) descreve Arteterapia como um tipo de expressão pessoal, da qual se utiliza da arte para comunicar sentimentos sem expectativas em obter um produto final, estético ou agradável, sendo assim, é um meio de expressão acessível a todos e não somente àqueles que têm talentos artísticos. "Não é necessário nenhuma habilidade ou inabilidade específica" (p.18).

A Arteterapia é assim chamada, principalmente por ter se desenvolvida mais no campo da saúde mental, especialmente nos hospitais psiquiátricos. Entretanto, pode ser importante não somente para aqueles que estão mergulhados em problemas sérios, como também para aqueles que buscam apenas explorar a si mesmo e os seus sentimentos (LIEBMANN, 2000).

O fazer artístico tem potencialidades de cura quando acompanhado pelo arteterapeuta, facilitando assim a ampliação da consciência e do auto-conhecimento, possibilitando mudanças a quem faz arte. Promove através da ação uma oportunidade de experimentar novas possibilidades de integração, expressão e transformação por intermédio da arte, onde novas possibilidades são imaginadas e experienciadas (CIORNAI, 2004).

Zinker (2007), afirma que o fazer artístico, como desenhar ou pintar, tem potencialidades terapêuticas, pois, 

"(…) quando são experienciadas como processos, essas atividades permitem ao artista se conhecer como uma pessoa inteira, dentro de um intervalo de tempo relativamente breve. Ele não só se torna consciente de um movimento interno direcionado à totalidade experiencial, como também recebe uma confirmação visual desse movimento nos desenhos que executa." (p.259, 260).

Liebmann (2000), salienta que a arte facilita a criatividade; é útil no trabalho com a imaginação e o inconsciente; quando concretos, possuem a vantagem de serem examinados depois de prontos; desenvolve a concentração, a destreza, a memória, a autopercepção, a imaginação, a desinibição, a expressão corporal e a expressão verbal.

A Arteterapia enquanto recurso técnico na Gestalt-terapia teve seu início marcado por Janie Rhyne, que a chamou de Experiência Gestáltica de Arte (em 1973), e posteriormente de Arteterapia Gestáltica (em 1987), conservando-se assim até os dias atuais (CIORNAI, 2004).

Em seu único livro: "Arte e Gestalt – padrões que convergem", Rhyne (1973/2000) define sua abordagem afirmando a valorização da individualidade de cada ser humano, enfatizando a grande importância terapêutica da atividade expressiva não interpretativa como processo integrador, bem como fonte de caminhos do aprendizado de si mesmo.

Ciornai (2004), define Arteterapia Gestáltica como "um modo de usar recursos artísticos em e como terapia, como uma compreensão do crescimento das pessoas e do trabalho terapêutico, fundamentada na Gestalt-terapia." (p.15).

Conforme a mesma autora, a Gestalt-terapia e a Arteterapia Gestáltica, acredita que o fazer da arte, quanto o processo de elaboração e reflexão da mesma, são considerados como tendo potencialmente valor terapêutico, devido à crença destas abordagens no processo criativo do ser humano.

Segundo a acepção Gestáltica, todo contato tem raízes em nossas "funções de contato" (ver, escutar, tocar, mover etc.), portanto os processos artísticos bem como outros processos experienciais, podem ser considerados e utilizados como recursos valiosos para promover a intensificação do contato consigo mesmo, com os outros e com o mundo (CIORNAI, 2004).

Liebman (2000) e Ciornai (2004) concordam ao dizerem que a dificuldade em dar sentido aos nossos sentidos e, expressar verbalmente sensações ou sentimentos indefinidos, "pode freqüentemente ser facilitada por outras linguagens. […] em imagens, cores, movimentos ou sons." (CIORNAI, 2004, p.71 e 72). Mobilizando assim, energia e emoção através da ação, formando a awareness no próprio processo da ação, devido à ativação das áreas sensório-motora, perceptual, emocional, cognitiva, imaginativa, intuitiva e até espiritual.

Zinker (2007), explica que através da arte, o cliente desenvolve a formação de figura-fundo da awareness congruente com a figura-fundo de sua arte. A obra acabada (com exceção do valor estético) torna-se uma confirmação de sua capacidade de se tornar um ser humano integrado.

No que tange a função do Arteterapeuta Gestáltico, Ciornai (2004) e Rhyne (2000), demonstraram que o mesmo não interpreta os trabalhos de seus clientes, pois como toda abordagem fenomenológico-existêncial, acredita que o cliente é agente de sua própria saúde e de seu processo de crescimento, e que os trabalhos e criações dos clientes possuem sentidos relevantes e significativos particulares.

Sendo assim, o Arteterapeuta Gestáltico exerce a função de guiar, facilitar e acompanhar a busca do cliente, sugerindo experimentos e técnicas que possam ajudá-lo a entrar em contato com realidades interiores e descobrir novos significados (CIORNAI, 2004).

Estas técnicas vão desde exploração de materiais como o desenho, colagem, gravura, argila, modelagem, pintura, máscaras e marionetes, como também meditações, expressões corporais, diálogos, teatro e imaginações (LIEBMANN, 2000; PAÏN e JARREAU, 2001; RHYNE, 2000).

Considerações finais

A psicoterapia em clientes com diagnóstico de esquizofrenia é de fundamental importância para o seu processo de equilíbrio entre fantasia e realidade, pois o mesmo já está auto-imerso e necessita de um auxílio real para auto-emergir.

Entretanto a dificuldade em manter um diálogo "coerente" com clientes que estão esquizofrênicos é demasiado exaustivo e quase que inacessível, destarte, levando-se em consideração as peculiaridade e acessibilidades de cada cliente, a Arteterapia Gestáltica nos apresenta um instrumento que pode ser realmente útil e acessível no processo terapêutico com clientes psicóticos, possibilitando desta forma um contato e uma integração da qual ninguém além do próprio cliente consegue realizar.

Meu objetivo neste artigo não logra esgotar o assunto, nem mesmo trazer a solução deste tipo de prática psicoterapêutica, mas sim, expor e auxiliar, o psicoterapeuta que quiçá passar pelo mesmo tipo de limitação que passei.

1 – "O que comumente se chama de intervenção terapêutica é o que o psicoterapeuta verbaliza ao cliente. […] A intervenção verbal do psicoterapeuta é o comportamento que consiste no recurso técnico primordial de seu trabalho" (LIMA FILHO, 2002, p.28 e 29).

2 – Constei em PERLS, F. S., 1977; FAGAN. J.; SEPHERD, J. L. (Orgs.), 1980; SANTOS, E., 2005; VICENTINI, E. B., 2007; MÜLLER-GRANZOTTO, M. J.; MÜLLER-GRANZOTTO, R. L., 2008; e VIEIRA, L., 2010.

Referências

AMERICAN ART THERAPY ASSOCIATION. What is Art Therapy? Disponível em: <http://www.americanarttherapyassociation.org>. Acesso em: 10 de maio de 2011.

ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA. Esquizofrenia. In: DSM-IV. Disponível em: <http://virtualpsy.locaweb.com.br/dsm.php>. Acesso em: 10 de maio de 2011.

CIORNAI, S. (org.). Percursos em Arteterapia: Arteterapia Gestaltica, Arte em Psicoterapia, Supervisão em Arteterapia. São Paulo: Summus, 2004.

LIEBMANN, M. Exercícios de arte para grupos. Trad. Rogério Migliorini – São Paulo: Summus, 2000.

LIMA FILHO, A. P. Gestalt e sonhos. São Paulo: Summus, 2002.

MÜLLER-GRANZOTTO, M. J.; MÜLLER-GRANZOTTO, R. L. Clínica dos ajustamentos psicóticos: uma proposta a partir da Gestalt-terapia. IGT na Rede, Rio de Janeiro, RJ, 5.8, 24 03 2008. Disponível em: <http://www.igt.psc.br/ojs/viewarticle.php?id=176>. Acesso em: 10 de maio de 2011.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Classificação de transtornos mentais e de comportamento: CID-10. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.

PAÏN, S.; JARREAU, G. Teoria e técnica da arte-terapia: a compreensão do sujeito. Porto alegre: Artmed, 2001.

RHYNE, J. Arte e Gestalt: padrões que convergem. São Paulo: Summus, 2000.

VICENTINI, E. B. (2007) Fronteira de Contato em Pacientes Psiquiátricos Institucionalizados. Disponível em: <http://www.nucleogestalt.com.br/artigo.asp?id=3>. Acesso em 10 de maio de 2011.

VIEIRA, L. Reflexões acerca da esquizofrenia na abordagem gestáltica. IGT na Rede, v. 7, nº 12, 2010, Página 65 de 80. Disponível em: <http://www.igt.psc.br/ojs/viewarticle.php?id=275>. Acesso em 10 de maio de 2011.

ZINKER, J. Processo Criativo em Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 2007.

One thought on “A esquizofrenia e a arteterapia como forma gestáltica de intervenção.”

  1. gostei muito, enriquecedor

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