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Ousadia de tomar partido dos mitos

Não são novas as tentativas de investigar a relação entre a psicanálise e a tragédia. Em geral, pecam pelo uso de categorias psicanalíticas para desvendar a arte trágica. O resultado, desastroso, obriga o leitor a ouvir o “psicanalês”, absolutamente ininteligível, mesmo entre analistas. Mas há aqueles que, igualmente maléficos, cometem a insensatez de confundir tal forma de arte com o método de cura que Freud criou.

Não são novas as tentativas de investigar a relação entre a psicanálise e a tragédia. Em geral, pecam pelo uso de categorias psicanalíticas para desvendar a arte trágica. O resultado, desastroso, obriga o leitor a ouvir o “psicanalês”, absolutamente ininteligível, mesmo entre analistas. Mas há aqueles que, igualmente maléficos, cometem a insensatez de confundir tal forma de arte com o método de cura que Freud criou.

Denise Maurano propõe outro caminho: seguir Freud em seu atrevimento de tomar partido da Antigüidade e da poesia, contra o ostracismo da ciência que privilegia as contradições excludentes e as distinções rigorosas da lógica aristotélica. Como o mestre, ela importa conhecimentos dos mitos e da literatura para bem dizer sobre a ordem da incoerência e do invisível, a inesgotável melodia pulsional. Usa metáforas para melhor transmitir a estranheza que habita o homem. Este foi, com certeza, um dos motivos pelo qual seu livro tenha sido primeiramente publicado na França, onde, sob a influência de Lacan, existe imensa preocupação de fazer valer a experiência inaugural da transmissão da psicanálise na formação do analista.

Denise estabelece, a partir da ascendência do real sobre o simbólico, uma relação entre as duas experiências. Faz entender a estrangereidade do sujeito da psicanálise, aquele que vive entre-dois: o corpo e a linguagem; a pulsão de vida e a de morte. E mais: em sua argumentação de que a psicanálise insere-se numa perspectiva trágica, ela leva o leitor a atravessar a concepção freudiana sobre a cultura fazendo-o desembocar no ponto de torção da ética freudiana em relação à tradição filosófica.

Presentes na escrita de Maurano desde “Nau do desejo” (Relume Dumará), as discussões sobre a ética da psicanálise enveredam por quatro tragédias dispostas em “atos”. Em cada um, a autora demonstra que o pensamento freudiano situa-se na tradição realista e trágica, e faz entender que a literatura é a mais fiel testemunha sobre o que permanece e não cessará de permanecer do lado de “fora” do simbólico.

No primeiro ato, a tragédia grega encontra-se desenhada na trilogia tebana: “Édipo Rei”, “Édipo em Colona” e “Antígona”. Para pensar a articulação entre a morte do herói trágico e o que designa como declínio do pai, a autora se serve do mito de “Totem e tabu”. Propõe-se a mostrar como a tragédia grega manifesta, a um só tempo, o apelo à lei e a transgressão absoluta dos limites. O caminho dos personagens da tragédia de Sófocles a Atè, lugar de ultrapassagem, é homólogo ao processo analítico.

Foucault, referência que enriquece o livro

No segundo ato, a tragédia moderna “Hamlet”, de Shakespeare, e “Atalia”, de Racine, tornam-se figuras privilegiadas para revelar o fracasso da razão e do excesso de subjetividade. Maurano faz conexões interessantes entre Shakespeare com seus inúmeros personagens loucos e a temática recorrente da loucura em suas tragédias e a emergência da subjetividade. Sob influência de Foucault, situa-o como moderno, o que enriquece o trabalho: o filósofo é referência a quem se interessa pela loucura na literatura no fim do séc. XVI e início do XVII.

No terceiro ato, na tragédia contemporânea e o apelo à libido, o amor conjugado à sexualidade é o pivô das tragédias. A trilogia de Claudel, “Os Coûfontaine”, é lida à luz de Lacan. Maurano mostra como a valorização da razão na Era Moderna transforma-se hoje em aumento do valor da sexualidade e do amor. O imperialismo econômico é expressão maior do amor desmesurado na forma da loucura pelos objetos. O que se apreende no ato em que Pensée, personagem cega, suscita fascinação e horror, é que a psicanálise toma sua razão de existir a partir de um ponto de torção do desejo de pensamento ao pensamento de desejo. A autora deixa em aberto o último ato e indica pesquisas a partir de duas cenas. Na primeira focaliza a função teórica e clínica de uma concepção psicanalítica da tragédia; na segunda propõe um trabalho transdisciplinar. Eis uma grande lição: sem este duplo movimento não há exercício crítico que leve o analista a ultrapassar o dito e enunciar novos dizeres; nada tem sentido isoladamente.

A face oculta do amor, a tragédia à luz da psicanálise, Denise Maurano. Imago, 218 pgs. R$ 26
Betty Fucks

Fonte: O Globo on-line
Rio, 08 de dezembro de 2001

BETTY FUCKS é psicanalista

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