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Narciso, seu reflexo e sua sombra

Serão estes atributos que se estenderão, também ao século XXI ?
Primeiro, tentemos recordar-nos do mito.
Serão estes atributos que se estenderão, também ao século XXI ?
Primeiro, tentemos recordar-nos do mito.
Narciso nasceu possuidor de uma beleza excepcional. Na cultura grega, assim como
em tantas outras, tudo o que excede, isto é, passa dos limites da média,
acaba se tornando assustador, porque pode arrastar o indivíduo para a “hýbris”,
que para os gregos é o descomedimento, muito distante do “métron”
, – equilíbrio.
Sua mãe, que era uma náiade ou ninfa que habita rios e riachos chamada
Liríope, foi à procura de Tirésias , um cego adivinho que
possuía a arte da “mantéia”, ou seja, a capacidade de
ver o futuro. Ela perguntou se Narciso viveria até ficar velho, ao que
o sábio respondeu: “Se ele não se vir…”
Seu pai era o rio Cefiso (Képhisos – o que banha, inunda). Assim, embora
mortal, Narciso era um ser proveniente das águas por parte de pai e de
mãe.
E, conforme sua mãe temera, Narciso foi assediado por todas as ninfas e
mortais que o viram. Mal ele crescera e havia uma profusão de mulheres
apaixonadas por ele, embasbacadas com a sua beleza deslumbrante. Mas ele não
queria saber delas e, aí não se sabe bem o porquê. Ou não
se sentia ainda pronto para um relacionamento ou, de tanto ouvir cantarem sua
beleza ficou orgulhoso e passou a desprezar as mulheres que o procuravam.
Ora, havia uma ninfa que tinha uma história muito infeliz. Seu nome era
Eco e, muito antes de vê-lo e se apaixonar por Narciso tinha sido uma moça
tagarela que falava sem parar. Zeus o pai dos deuses gregos, sempre buscando um
modo de enganar Hera sua esposa, para que pudesse se deitar com qualquer ninfa
ou mortal que lhe chamasse a atenção, mandou que Eco fizesse companhia
a Hera e assim, a distraísse. Hera percebeu a artimanha depois de algum
tempo e, como era seu costume se vingou na pobre ninfa, em vez de amaldiçoar
seu marido que, afinal era o autor da malandragem.Hera fez com que Eco nunca mais
conseguisse articular uma frase siquer e ela só podia repetir as últimas
palavras de qualquer frase que ouvisse.
Aconteceu que, quando Eco já estava apaixonada por Narciso, ela o seguiu
a uma caçada onde, por infelicidade ele se perdeu dos amigos que caçavam
com ele e começou a gritar à procura: ” Ninguém me escuta?”
Escuta, repetiu Eco, mas ele não a via porque ela estava escondida, com
vergonha de tê-lo seguido.
Então ele gritou aos amigos, pensando que eles que lhe responderam: “Vamos
nos juntar aqui…” E Eco : Vamos nos juntar aqui… e perdendo a timidez
e a vergonha, apareceu de braços abertos para ele. Mas, ele a repeliu dizendo
que preferiria a morte a ficar com ela. Eco ficou tão triste e deprimida
com a recusa dele que deixou de se alimentar e foi definhando até se transformar
em um rochedo. Apenas sua voz permaneceu, da mesma maneira que estava após
a maldição de Hera: só repetia as últimas palavras
do que era dito perto dela.
Então, houve uma revolta das ninfas, que foram procurar Nêmesis,
a deusa da Justiça. Esta, depois de ouvir suas queixas achou que Narciso
merecia o castigo de ter um amor impossível.
Ignorando o castigo a que estava submetido e com sede depois de outra caçada,
Narciso se aproximou de um lago tão calmo e tão límpido que,
ao curvar-se sobre as águas para beber, se deparou com sua imagem refletida
e, ficou pasmo diante de tanta beleza. O rosto que via parecia talhado em mármore
e assemelhava-se à escultura de um deus. O pescoço esguio, parecia
trabalhado em marfim. A princípio não se deu conta de que aquela
era a sua própria imagem. Nunca tinha se visto, como poderia se “re-conhecer”
de imediato? Mas tão apaixonado ficou que tentou tocar aquele rosto, fosse
de quem fosse e, qual não foi sua surpresa quando percebeu que seus movimentos
se repetiam também nas águas! Só então concluiu que
aquele era o seu rosto, tão maravilhoso que não conseguiu mais tirar
os olhos de seu reflexo e morreu ali mesmo, de inanição, sem conseguir
afastar os olhos da própria imagem.
Quando, depois de sua morte, amigos foram procurá-lo, só encontraram
à beira do lago uma flor de pétalas brancas e miolo amarelo, muito
delicada, de rara beleza e de um perfume inebriante, a que deram o nome de narciso.
Ficaram depois sabendo que, até no Hades (mundo subterrâneo para
onde vão as almas dos mortos), ainda hoje ele procura ver seu reflexo nas
águas escuras do rio Estige.
Esta é uma história triste e tão antiga que ao lembrar dela
nos parece uma bobagem qualquer, dessas que se conta às crianças,
com o intuito de dizer a elas: não seja egoísta, ego-centrado, não
pense que é só você que existe no mundo, nem tão presunçoso,
não faça pouco das pessoas…
Só que mitos não são bobagens e, por mais que tentemos passar
ao largo e dizer: “Já estou cansado de saber a moral desta história
…” , não é bem assim.
Temos muitas coisas a pensar e rever neste mito de um Narciso que está
vivo e atuante em cada um de nós, respeitáveis cidadãos do
mundo em pleno século XXI.
Parte da palavra Nárkissos que é o nome de Narciso em grego, vem
de “nárke” que significa entorpecimento, torpor. É desta
raiz que se origina, também, a palavra narcótico (entorpecente).
Junito Brandão em sua obra “Mitologia Grega” assim se coloca
a respeito deste assunto: “…nárke como fonte de narcose (sono
produzido por meio de narcótico), ajuda a compreender a relação
da flor narciso com as divindades ctônias e com as cerimônias de iniciação…
Narcisos plantados sobre os túmulos, o que era um hábito, simbolizavam
o sorvedouro da morte, mas de uma morte que era apenas um sono… Uma vez que
o narciso floresce na primavera, em lugares úmidos, ele se prende à
simbólica das águas e do ritmo das estações e, por
conseguinte, da fecundidade, o que caracteriza sua ambivalência morte-(sono)-renascimento.”

Mas, afinal qual é a simbologia deste mito, além daquelas já,
exaustivamente, debatidas? Quem é Narciso?
É alguém que se apaixona pela própria imagem.
E nós, quem somos? Muito se tem falado a respeito do quanto devemos nos
amar, até para que possamos amar ao outro… Mas não é aí
também que quero chegar. Quero antes falar das semelhanças entre
os reflexos e as sombras. Para tanto, volto a recorrer a J. Brandão.
” O desenlace trágico… acima transcrito, é a conscientização
de Narciso de que está perdidamente apaixonado por sua própria imagem;
de que sua paixão é um auto-amor, um amor do ‘self’ e não
um amor pelo ‘outro’.Tal descoberta leva-o ao desespero e à morte, por
uma reflexão ‘patológica’. ‘Reflectere’, de ‘re’, novamente e ‘flectere’,
curvar-se, significa etimologicamente, voltar para trás, donde ‘reflexus’,
reflexo, retorno, e ‘reflexio’, – ‘onis’ , inclinação para trás.
Jung acentuou bem o que ele compreende por reflexão: ‘O termo reflexão
não deve ser entendido como simples ato de pensar, mas como uma atitude….
Como bem indica a palavra reflexio, isto é, inclinação para
trás, (…) isto é, um deter-se, procurar lembrar-se do que foi
visto, colocar-se em relação a um confronto com aquilo que acaba
de ser presenciado. A reflexão, por conseguinte deve ser entendida como
uma tomada de consciência.
Mas a reflexão, como a de Narciso, pode representar sério perigo…
(porque sua) história fala de um desenvolvimento patológico, exatamente
isto que Jung chamou de instinto de reflexão. Jung atribui a esse instinto
a possibilidade da riqueza e da complexidade psicológica. Trata-se de um
instinto estritamente humano e, sem ele, a cultura e a interioridade psíquica
seriam inconcebíveis. Mas, como Jung frisa, cada instinto ( ele numera
cinco) tem um potencial de expressão patológica. A patologia é
indicada, geralmente, quando um dos cinco instintos começa a dominar o
resto e a restringir sua progressão para a satisfação. Narciso
indicaria este desenvolvimento patológico no instinto de reflexão:
a atividade da reflexão (voltar-se para si mesmo) domina e exclui a necessidade
de alimentação, de sexualidade comum, da atividade da entrada de
qualquer pensamento ou impulso novos.
O que o jovem… ama é sua ‘reflexão’ que, como já foi visto,
anteriormente, é sua ‘umbra’, sua alma-sombra. Sob (esta) influência
‘ama-se o que se auto-reflete e, reflete-se o que se ama’…
O perigo que oferece o aprofundar-se em demasia na linha narcísica de alma
e amor-reflexão está não somente na auto-contenção,
no solipcismo, no incesto intrapsíquico, mas também no suicídio.
De modo explícito, ao se recusar comer, Narciso se suicidou.”

Agora que J. Brandão nos esclareceu a respeito dos reflexos eu gostaria
que “refletíssemos” juntos a respeito do que têm em comum
os reflexos e as sombras.
Ambos nos espelham de alguma maneira. Ambos acompanham nossos movimentos, definem
nossos contornos e nossos limites. Ambos para se apresentarem dependem da luz.
Só que os reflexos nos dão uma aparência mais nítida,
por isso, talvez gostemos mais deles. Além do que, em todas as culturas,
desde os tempos mais remotos, existem várias associações
não muito agradáveis no que diz respeito à sombra…Até
mesmo as “assombrações” têm a ver com ela. Assombrações
com vários sentidos,conforme veremos…
Na teoria Junguiana, a sombra representa tudo aquilo que não conhecemos
de nós, mas que podemos ainda vir a conhecer, tais como potencialidades
das quais ainda não tivemos consciência ou, se tivemos pode não
ter havido oportunidade para desenvolve-las e, desta forma, elas ainda se encontram
lá, na obscuridade da nossa sombra. Fazem parte de nossa Sombra também,
tudo aquilo que mais detestamos em nós e que, conhecemos sim, mas desejaríamos
não ter conhecido jamais e, procuramos esquecer e reprimir da maneira mais
eficiente possível. Então, para negar que aquilo nos pertence o
projetamos no outro.
Assim, ao refletirmos no Narciso que vive em nós, nos confrontamos com
uma situação um tanto sombria.
O século XX foi considerado o século das migrações.
Em todo o planeta, via-se massas incalculáveis de pessoas caminhando a
esmo de fronteira em fronteira, buscando asilo, fugindo de guerras étnicas.
E, o que vem a ser uma guerra étnica? O quê, precisamente, mobiliza
parte de uma nação a querer massacrar a outra parte dessa mesma
nação, seus vizinhos com quem, em muitos casos conviveram por anos
a fio?
A busca do reflexo e o medo da sombra, do diferente, do desconhecido, do que nos
incomoda e não queremos ver nem mesmo no “outro”.
Quando estou no aconchego de família, em que todos falam a minha língua,
é tão reconfortante…Sinto-me compreendido e amado, até
mesmo admirado, reconhecido pelo que sou, pelo que estou me tornando, pelos projetos
que tenho… E, eu preciso desta “re-validação”, deste
“re-conhecimento” de que valho alguma coisa, de que sou importante para
alguém…E me sinto muito orgulhoso com a sensação de “pertencer”…de
fazer parte de algo que prezo tanto.
É. Continuamos como Narcisos procurando e nos apaixonando por nossos reflexos,
por nossos “semelhantes”, por nossos iguais, e assim nos encontramos
em pleno século XXI, no novo milênio, apedrejando, escorraçando
e matando aqueles que não tem a nossa cor, os nossos costumes, a nossa
raça, que não possuem nosso sangue ou, quem sabe, nosso nível
cultural ou ainda, nosso poder econômico e principalmente, nossas convicções
políticas e religiosas, isto é, nossos valores.
Indo atrás de nossos “reflexos” , tais como Narciso, nos suicidamos
em guerras e ampliamos cada vez mais a nossa Sombra . Entorpecemos nossos sentidos
e perpetuamos a “hamartía” de Narciso ( erro fatal que leva à
tragédia, sempre por ignorância).
Mas, será que é mesmo um pecado tão grande querer estar em
comunhão com nossos pares, nossos iguais?
Não, quando o olhar não se enrijece. Não, quando há
uma abertura dos cinco sentidos que se amplia no espaço, quando há
lugar na minha casa e no mundo para o diferente, o oposto, o não-eu .
Talvez nem tudo esteja perdido porque o mito de Narciso falava que ele era proveniente
das águas e estas simbolizam a fecundidade, a morte simbólica do
sono que sonha com um “re-nascimento”. A simbologia das águas
fala do Eterno Retorno Cíclico. Então, se mais uma vez recorrermos
à teoria Junguiana, ela nos fala da evolução em espirais,
onde o retorno pode ser em uma oitava acima.
Quem sabe possamos renascer para a evolução de um mundo melhor?
Mas para haver evolução é preciso que haja reflexão,
tomada de consciência no plano individual, familiar, social, humano, planetário.
Narciso sempre viverá em cada um de nós, mas podemos vivenciá-lo
sem a patologia da “hýbris”.
Poderemos, (quem sabe?), neste novo milênio que com tanta alegria acabamos
de entrar, trazer à luz da consciência mais um bocado da nossa Sombra,
tentando lidar com as diferenças e nossos conflitos e ambivalências
em relação a elas.

Zidnah Debieux,
Psicóloga clínica de linha Junguiana,
especializada em técnicas corporais, respiração e relaxamento;
aprimoramento: Núcleo de Psiconeuroimunologia
na Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica.
Nota do autor: Resolvi publicar este texto neste momento, apesar de tê-lo
escrito há mais de um ano (pouco antes do fatídico 11 de setembro).E,
apesar de sua aparência quase utópica no contexto atual ou, até
por isto mesmo, penso que este é um tema para se refletir MUITO.

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