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Psicanálise e o mundo net – Ego navega no mundo net

Atualmente é indiscutível a questão do avanço do chamado “modelo virtual” possibilitado pela rede mundial de computadores. O mundo psicanalítico, integrado às relações sociais, também é alterado e modificado com a entrada dessa nova ferramenta (modo) de comunicação. Assim como o paciente ao procurar um médico, o analisando, hoje, busca informações (as vezes bem mais que isso) ao iniciar uma análise e as encontra com maior facilidade pela disponibilidade de excelentes textos disponíveis na net. Milita a seu favor o fato de serem curtos e sem custo financeiro. Perigo há, porque dentro da net não há necessariamente um controle de qualidade, há muita desinformação, muito material absolutamente equivocado. Então, sem dúvidas, se faz necessário que se elejam alguns critérios para a busca dessa informação e, conseqüentemente, também um certo rigor na sua produção.

Não há sentido na crença de que informações teórico/técnicas interfiram na relação terapêutica, sempre houve as buscas de informação nos livros, conferências, palestras, etc por parte de alguns analisandos. Se informação interferisse na análise pensaríamos que a psicanálise didática ou formativa seria totalmente ineficaz, porém, constatamos que essa idéia não corresponde, de forma alguma, à realidade, visto que o mecanismo de defesa do ego, denominado racionalização, é, como toda resistência, revela mais que oculta. Veremos que o que possibilita essa análise tratar-se-á de uma demanda latente que antecede a informação. Mas, fato é que a psicanálise, como tudo mais, sofre hoje alguma interferência (positiva ou negativa) com a inserção do sujeito psíquico que ela aborda, dentro desse mundo da virtualidade em rede mundial. Também é fato que toda relação é, em última instância, virtual – porque toda ela é imaginada, projetada, transferida. Freud já havia entendido isso no século passado, em seus escritos sobre o amor. Será que hoje a psicanálise já produz pensamento suficiente em face desse sujeito analisando “virtualizado” e sua subjetividade? Se nos for possível perceber a virtualidade de toda e qualquer relação, tal percepção não nos afastará da conclusão de que atualmente sublinha-se e possibilita-se, muito mais marcadamente, esse aspecto das relações.

Quando um sujeito psíquico deita no divã, encontra-se acompanhado por uma multidão em algazarra. Gosto imensamente, apesar de ser meio ríspida e até agressiva, da postura relatada por Freud, sobre a questão da porta dupla de seu consultório: uma delas revestida por feltro, no texto “Conferências Introdutórias sobre Psicanálise parte III”ª(vol XVII pág 293), porque aponta para o fato dessa multidão estar projetada em uma desejada imagem da sala de espera do psicanalista, refletindo no imaginário do paciente um profissional de sucesso, assim como pode representar a própria multidão que é carregada, junto a ele até o divã (tanto quanto o que diz Freud a respeito das relações amorosas), sendo essa última afirmativa de nossa única responsabilidade, e, parte central do tema desse texto. Trecho do texto de Freud:

Sobre a existência das portas:

“A porta simples, entre minha sala de espera e a sala de atendimento e a de tratamento, mandei fazê-la dupla e revestida de feltro. Não pode haver dúvidas a respeito do propósito desse arranjo”

Sobre o propósito desse arranjo

“Nesse último caso, sabe muito bem que é de seu interesse que sua conversa com o médico* (*psicanalista) não seja ouvida secretamente, e nunca deixa de fechar cuidadosamente as duas portas” ª.

Duas portas, sigilo, contenção. Sujeito a sujeito, Inconsciente com Inconsciente (com “I” maiúsculo), encontro absolutamente diferenciado de todos os outros, espelho em carne e osso. E desejo. Métrica do tempo que se apresenta em lapsos e falhas, projeção, deslocamento, identificação ou negação de um ego em luta para ordenar impulsos diferentes e distônicos. Obedece a construção de unidades, assim como a sua dissolução no balé da dialética pulsional, vida X morte, construção X destruição. Dentro do corte na dinâmica pulsional, esse sujeito analisando, atua, promove seu “acting/in” ou o seu “acting/out”, como tentativa de organizar e projetar resistência e transferência. Conceitos esses de fundamental importância no entendimento da prática clínica cotidiana. Existem tanto para o analisando quanto para o psicanalista (como contra, porque apoiada na transferência do analisando), e estarão presentes em cada nova movimentação. Compreendia-se esse "acting" dentro daquela necessidade de sigilo, que Freud aborda na passagem acima, referindo-se às portas de seu consultório e a observação inicial que faz de seu paciente no manejo da situação. A regra sempre foi a de tentar restringir o analisando ao “acting”- atuação, segura e dissolvida dentro da relação transferencial.

Mas, perguntamo-nos: esse sujeito inscrito na lógica pós-moderna anseia a exposição ou a privacidade? Teria a mesma observação a fazer Freud nessa atualidade psíquica? O que deseja esse sujeito expositivo, modelo “Big Brother”? Esse que enxerga nesse “Outro” o grande pai para quem se exibe e de onde retira grande gratificação, correndo para isso todo e qualquer risco que o aproxime dessa realização. Opera seus mecanismos de defesa do Ego como meio e caminho para a realização dessa empreitada, a exposição, mesmo que deslocada de seu objeto inicial.

A qual ego então estaremos nos referindo ao tratarmos das questões de subjetividade desse sujeito inscrito na virtualidade? Ele elabora ou atua? Quais serão suas relações estabelecidas como ganho secundário da doença? Quais mecanismos estarão sendo utilizados prioritariamente por esse sujeito? Poderemos falar, hoje, em um modelo único desse aparelhamento psíquico ou o corte cultural dado pela realidade estará sobressaindo e determinando a “escolha” de seus mecanismos operacionalizados? Descascar a cebola no velho modelo freudiano, nos apresentará aos mecanismos eleitos por esse ego frente às exigências da realidade e de seus impulsos internos (pulsionais). Portanto, essa é mais uma pergunta que terá que ser permanente para a psicanálise atual: Como se apresenta esse psiquismo dentro dessa realidade e quais são os mecanismos mais utilizados em nome da satisfação que atenderá ao “Princípio do Prazer”?

Esse homem para quem a informação está apenas a um clique – ou como diriam os portugueses, a um “estale”. Esse homem que utiliza diariamente meios que o expõem de maneira controlada, onde a informação que gera sobre si mesmo passa pelo seu próprio controle e determina, assim, aspectos de prazer ligados à exibição. Que virtualidade se apresentará na neurose de transferência, dada a possibilidade ilimitada já encontrada no cotidiano desse sujeito? Romper o anonimato seria uma busca da psique moderna?

Como diria Freud em seu texto “Recordar, repetir e elaborar” (Obras Completas – vol XII):

“A transferência cria, assim, uma região intermediária entre a doença e a vida real, através da qual a transição de uma para a outra é efetuada”.

Em que esse sujeito ligado as grandes redes de informação e relação estará modificado para o setting psicanalítico? Haverá alguma diferença ou tudo segue em seu costumeiro caminhar transferencial? E, se nos perguntamos sobre a inserção do analisando, temos que, inevitavelmente, nos perguntar também quanto à inserção, nessa virtualidade, de ganhos e gratificações, do sujeito psíquico do psicanalista.

É de se indagar se a técnica psicanalítica dará conta de traduzir esse Inconsciente?

Sim. Considera-se essa possibilidade como algo factível, porque “ouvir” o Inconsciente em qualquer língua ou subjetividade será sempre a “vocação” da psicanálise; vem sendo assim desde a sua origem. Seus acertos e erros possibilitaram preponderantemente um avanço, enquanto corpo teórico, do que a um retrocesso.

Nessa subjetividade aparelhada em rede, terão os psicanalistas a tarefa da escuta totalmente apoiada na regra fundamental, para estarem aptos a descobrir nuances antes nunca tão claramente apresentadas. Esse sujeito passeia pela virtualidade das relações com uma intimidade quase inconseqüente, quase que desprovida de entendimento; mas o fato é que caminha por ela e atua dentro dela.

Certa vez uma amiga que não conhece psicanálise perguntou-me sobre como Freud atendia. Expliquei-lhe a questão do uso do divã e ela me reagiu com um insight realmente deslumbrante: argumentou que, então, Freud, por não olhar e nem ser olhado pelo paciente, haveria inventado o atendimento virtual. No início achei graça da afirmação; depois me vi obrigada a pensar nessa questão e conclui que ela estava correta. Freud convidava à projeção de imagos, dentro da relação transferencial, que é, seguramente, virtualizada.

Dessa forma, nesse entrelaçamento virtual/real surge um psiquismo já ambientado com a possibilidade de entrar em contato com algo que pesa como real, mas que está totalmente apoiado na “irrealidade” do imaginado. Esse sujeito deita-se no divã e traz para análise temas de sua vida afetiva, toda ela virtualizada, saiba ele disso ou não. Mas a pergunta que não cala será a que fala de quais mecanismos esse sujeito irá operar ao lidar com a pergunta sobre a consistência da escolha frente ao virtual de suas possibilidades. Imaginar e realizar, diferença antes tão demarcada e, hoje, com divisão tão pouco perceptível na maioria das vezes.

Para os que desacreditam da possibilidade de intervenção da psicanálise – essa sim uma ciência bem maior, mesmo tendo trazido à si alguma inspiração filosófica -, fica o corte que ela possibilita enquanto a “escuta” capaz de trazer para si a “fala” contida em toda e qualquer subjetividade. Porque perceberá, ao mesmo tempo, ao todo e ao particular, sem que se tenha uma noção muito exata de onde começa um e onde termina o outro lugar, uma vez que nem sequer na construção do psiquismo isso poderá ser determinado com exata precisão.

Falamos desse sujeito que muitos pesquisadores sustentam que saiu da histeria, e, hoje, estaria mais para algo próximo aos “borderlines”, porque determina e é determinado pelas relações e instituições do meio onde está inserido.

Como nada temos a concluir, com a intenção de mera provocação ao pensamento, o texto terminará com uma anedota contada por Freud sobre convicção e convencimento que vislumbra a diferença entre aquilo que se acredita e o que é passível de efetivar-se, mesmo quando imbuído das melhores intenções. Tal passagem encontra-se no texto “ Observações sobre o amor transferencial (Novas recomendações sobre a técnica da Psicanálise III)" e diz:

“O corretor de seguros, livre pensador, estava à morte e seus parentes insistiram em trazer um homem de Deus para convertê-lo antes de morrer. A entrevista durou tanto tempo que aqueles que esperavam do lado de fora começaram a ter esperanças. Por fim, a porta de quarto do doente se abriu. O livre pensador não havia sido convertido, mas o pastor foi embora com um seguro” (pág 215)

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