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Estudo da cena primária: construções para a análise

Resumo

Este artigo irá discutir um dos pontos fundamentais da teoria Freudiana: A cena primária e as fantasias dela decorrentes. Analisaremos o caso “Homens dos Lobos”, que é de grande importância para a compreensão da cena primária, bem como suas conseqüências na constituição do sujeito. Com isso, percorreremos aspectos fundamentais no processo de construção da análise.

Palavras chave:
Cena Primária, Fantasia, Sonho, Análise.

De 1893 a 1895, período dos Estudos sobre a histeria, um dos pressupostos da teoria Freudiana relaciona-se ao trauma psíquico e seu conteúdo sexual. Essa teoria sustentava que a histérica foi em sua infância vítima de uma sedução sexual real e esse fato seria recalcado e transformado em núcleo patogênico.

Em setembro de 1897, em uma carta endereçada a Fliess, Freud escreve “Não acredito mais em minha neurótica”. Isso baseava-se particularmente em duas razões: o fracasso terapêutico na maioria dos casos e a desconfiança da veracidade dos relatos que apontavam que todos os pais seriam pervertidos. Essas histórias passam então a serem consideradas fantasias. “Aquilo que se argumentou inicialmente foi não serem elas realidades, mas sim fantasias. Contudo, o que se argumenta agora é, evidentemente serem fantasias não do paciente, mas sim do próprio analista”. (Freud, 1996 p.63)

A não compreensão de uma cena (como a relação sexual dos pais) traumatiza o sujeito. O trauma está ligado à linguagem. O fato de não – saber. Não compreender. A linguagem não ser capaz de produzir sentido para tudo. Isso se da na cena primária. É o que Lacan chama de Pragung (cunhagem, estampagem). A Pragung ou inscrição se dá no registro do imaginário, não sendo integrada ao sistema verbalizado do sujeito porque é anterior à aquisição da fala. O sujeito então dará uma interpretação para isso – a fantasia. E aquilo que não pôde ser simbolizado será repetido.

 “O desvio de interesse, das incumbências da vida real, a existência de fantasias na qualidade dos substitutos de ações não realizadas, a tendência regressiva que se expressa nesses produtos – regressivas em mais de um sentido, na medida em que estão envolvidos simultaneamente em recuo diante da vida e um retorno ao passado, todas essas coisas se confirmam, é regulamento confirmado pela análise”. (Freud, 1996 p.63) 

Em fevereiro de 1910 um jovem rico dirigiu-se ao Freud para ser analisado. Sua infância foi atravessada por uma histeria de angústia (na forma de uma fobia animal), que se iniciou antes do seu quarto aniversário e transformou-se em uma neurose obsessiva de conteúdo religioso, que manifestou-se até os dez anos. Dos dez aos dezoito anos teve uma vida relativamente normal, quando contraiu uma gonorréia infecciosa que abalou sua saúde.

Quando era ainda muito pequeno, por volta dos três anos e meio sua irmã o induz a práticas sexuais pegando no seu pênis e brincando com ele. Essa atitude passiva diante da irmã, que sempre era elogiada pelos pais por ser mais inteligente e desembaraçada que ele, deu lugar a fantasias em que ele se colocava tentando ver a irmã despida e acabava por ser castigado pelos pais. Ele então tentou ganhar outra pessoa de quem gostava: sua babá Nanya. Começou então a brincar com o pênis na presença dela. A babá se desiludiu e disse que as crianças que faziam isso ficavam com uma “ferida” no lugar, ameaçando-o assim de castração.

Sua infância pode ser dividida em duas fases: uma de mau comportamento e perversidade, desde a sua sedução, e outra na qual predominaram os sinais de neurose. O evento que torna possível essa divisão foi um sonho relatado:

 ““Sonhei que era noite e que eu estava deitado na cama. (Meu leito tem o pé da cama voltado para a janela: em frente da janela havia uma fileira de velhas nogueiras. Sei que era inverno quando tive o sonho, e de noite). De repente, a janela abriu-se sozinha e fiquei aterrorizado ao ver que alguns lobos brancos estavam sentados na grande nogueira em frente da janela. Havia seis ou sete deles. Os lobos eram muito brancos e pareciam-se mais com raposas, e orelhas empinadas, como cães quando prestam atenção a algo. Com grande terror evidentemente de ser comido pelos lobos, gritei e acordei. Minha babá correu até minha cama, pra ver o que havia acontecido. Levou muito até que me convencesse de que fora apenas um sonho, tivera uma imagem tão clara e vívida da janela a abrir-se e dos lobos sentados na árvore. Por fim acalmei-me, senti-me como se houvesse escapado de algum perigo e voltei a dormir”.“A única ação no sonho foi a abertura da janela, pois os lobos estavam sentados muito quietos e sem fazer nenhum movimento sobre os ramos da árvore, à direita e à esquerda do tronco, e olhavam para mim. Era como se tivessem fixado toda a atenção em mim. – Acho que foi meu primeiro sonho de ansiedade. Tinha três, quatro, ou, no máximo, cinco anos de idade na ocasião. Desde então, até contar onze ou doze anos, sempre tive medo de ver algo terrível em meus sonhos””. (Freud, 1996 p.41) 

O sonho parecia apontar para outra cena, desconhecida para o sonhador e muito anterior. A partir do relato do sonho e das associações do paciente, Freud reconstruiu essa cena, de uma cópula entre os pais, onde o garoto, que teria nessa época um ano e meio de idade, acordou por causa de uma febre, possivelmente às cinco horas e presenciou um coito por trás, repetido três vezes, onde ele podia ver os genitais da mãe, bem como o órgão do pai. Então nesse caso “o conteúdo da cena primária é um quadro de relações sexuais entre os pais do menino, numa postura particularmente favorável a determinadas observações”. (Freud, 1996 p.66)

Observemos agora de que forma esta cena influencia a vida do paciente, o desencadeamento de sua neurose obsessiva e como ela se repete na análise do Homem dos Lobos. Para isso é preciso que falemos de uma outra cena, essa sim lembrada pelo paciente. Grusha (sua babá quando ele era mais novo) estava ajoelhada no chão varrendo, quando o paciente a viu urinou no chão e ela o replicou.

“Quando viu a moca empenhada em esfregar o chão, ajoelhada, com as nádegas projetando-se e as costas em posição horizontal, deparava outra vez com postura que a mãe havia assumido na cena da cópula. Para ele, a moça transformou-se em sua mãe, foi presa de excitação sexual devido a ativação dessa imagem; e, como o pai (cuja ação ele só pode ter considerado, na ocasião, como a de urinar), comportou-se de modo masculino em relação a ela. Seu ato de urinar no chão foi, na realidade, uma tentativa de sedução, e a moça respondeu a esse ato com uma ameaça de castração, exatamente como se tivesse compreendido o que ele queria dizer”. (Freud, 1996 p.100) 

Isso teve fundamental influencia na escolha de seu objeto de amor e a condição da qual dependia seu apaixonar-se: postura, a ocupação da mulher, preferindo as camponesas, que estavam rebaixadas em relação a ele. “A compulsão que procedia da cena primária foi transferida para essa cena com Grusha e levada adiante por ela”. (Freud, 1996 p.101)
Voltando a cena primária, Freud fornece a parte que faltava, como a criança interrompeu a relação sexual dos pais fazendo cocô, o que lhe deu uma desculpa para gritar. “Assumiu imediatamente uma atitude passiva e demonstrou mais inclinação no sentido de uma subseqüente identificação com as mulheres do que com os homens”. (Freud, 1996 p.89)
Essa identificação aparece no sonho, e a partir desse sonho teve início sua angústia de ser devorado pelo lobo. Isso era a transposição do desejo de ser copulado pelo pai e obter satisfação sexual da mesma maneira que a mãe. O que o paciente recusava era ver sua masculinidade castrada para ser satisfeito sexualmente pelo pai.

Um dos sintomas de sua neurose obsessiva da infância, de caráter religioso, era que antes de dormir era obrigado a rezar por muito tempo e fazer em uma série interminável o sinal-da-cruz. Também costumava beijar cada uma das imagens sagradas penduradas na sala. Aconteceu que nesse momento vinha a sua cabeça pensamentos blasfêmicos como “Deus-Suíno” ou Deus-Merda”; foi atormentado por uma obsessão de ter que pensar na Santíssima Trindade sempre que via três montes de esterco na estrada.

O Deus cruel com que ele estava lutando remeteu seu caráter de volta ao pai do paciente, figura aterrorizadora que o ameaçava com a castração.

“Num estágio posterior da vida sexual as fezes adquirem o significado de um bebê. Pois, os bebês, como as fezes, nascem através do ânus. O significado de “dádiva” das fezes admite prontamente essa transformação”. (Freud, 1996 p.90)

Assim, “Deus-Merda” era provavelmente uma abreviação de defecar em Deus. Ou seja dar-lhe um bebê, tal como ele gostaria de dar ao pai.

“Na sua identificação com as mulheres (isto é, com sua mãe) estava pronto a dar ao pai um bebê, e sentia ciúmes da mãe, que já o havia feito e talvez fizesse outra vez”. (Freud, 1996 p.91)
Contudo pretendemos mostrar as relações da cena primária, onde a identificação com a mãe, é fundamental para a compreensão da neurose obsessiva do Homem dos Lobos, e  é também condição necessária para sua recuperação.

“Se observarmos a questão mais de perto, não podemos deixar de assinalar que, nas condições que estabelecera para sua recuperação, o paciente estava simplesmente repetindo a situação à época da cena primária. Naquele momento, quisera substituir a mãe, e, como há muitos pressupostos, foi ele próprio que, na cena em questão, produziu o bebê-excremento.

Permanecia na sua vida sexual, e cujo retorno, na noite do sonho, trouxe o início da doença. O rompimento do véu era análogo à abertura dos seus olhos e à abertura da janela. A cena primária transformara-se na condição necessária para sua recuperação.” (Freud, 1996 p.108) 
O caso do Homem dos Lobos trás importantes contribuições para a compreensão da cena primária, fator fundamental para que a análise alcance sucesso. É comum que em nossos atendimentos nos preocupemos em descobrir essa cena em nossos pacientes. Entretanto, vestígios dessa cena estarão de uma forma ou de outra presentes na sua vida e na forma que ele atua, na sua resposta ao desejo do outro, em seu modo de gozo.

Referências

FREUD, Sigmund. Uma Neurose Infantil e outros trabalhos. Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: Rio de Janeiro: Imago, 1996.

Autoras:

* Flávia Lorém G. Nunes[
* Simone Oliveira Damasceno
* Thaís Lima Franco
* Viviane Maria Oliveira

Alunas do 8º período de Psicologia da PUC/Minas em Arcos

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