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O sujeito não tem idade

A possibilidade de atender uma criança saudável no contexto hospitalar foi uma experiência singular (como toda a experiência analítica) e ao mesmo tempo plural: muitas questões, muitos atravessamentos, muitos sonhos e muitas elaborações.

Y. é uma criança de oito anos cujo pai está internado no CTI do hospital em estado muito grave. A mãe vinha trazendo questões dele na escola e em casa, que mostravam o quanto ele precisava ser ouvido naquele momento. A psicóloga que a acompanha sugeriu que eu o atendesse, o que prontamente aceitei. O primeiro contato foi breve, no hospital. Apresento-me, convido-o ao consultório e marcamos o horário. De início já me chamou atenção a postura dele: muito adulta. Horário que não atrapalhasse a aula e que não prejudicasse seus estudos. Mais tarde, no a posteriori, percebo que é o papel que ele assume na ausência do pai: do homem da casa, responsável e sábio. O homem que cuidaria da mãe, como recomendou seu Pai do lugar de lei.  Logo na primeira entrevista, Y. conta um sonho que ele chama de “sonho da voz”.

É uma voz que não tem “cara” (sic) e repete incessantemente: “seu pai vai morrer, seu pai vai morrer” (sic). Daí começo a interrogar o que ele sabe do pai. Como ele está, a gravidade da doença, a recorrência do sonho, como se sente quando acorda e como é a vida na sua casa. Ele se põe a falar, num português correto e numa linguagem bem elaborada para seus oito anos.  Quando tem receio do que diz, por vergonha ou insegurança, esquiva o olhar, brinca com os cabelos e sorri. Ele deixa claro quando tem resistência em falar.  Muito bem informado, Y. sabe que seu pai não tem condições de voltar para casa, o que não diminui a saudade e o espaço vazio que ele deixou no Dia dos Pais. Trabalho com ele o sonho da voz, onde concluímos que ela é, na verdade, a voz do seu medo, o horror da possibilidade de perder o pai que ainda vive no hospital. Conta, ainda, como é ficar em casa com a mãe.

Diz que ela acorda chorando de madrugada e que também tem pesadelos. Que ele tem que acalma-la e dizer que está tudo bem. Dividem a mesma cama, já que seu quarto ainda não está pronto. Novamente, o homem da casa? Não vê a hora de ter seu beliche e dormir separado da mãe, mas sabe que enquanto a reforma não acabar e o pai não sair do hospital, é difícil ter seu próprio quarto. Ganho evidente para Y na ausência do terceiro. A mãe é só dele!  Peço que ele faça um desenho de como ele imagina seu pai no CTI. Aparece um pai imenso, com ênfase na “barrigona” (sic), numa cama que ocupa quase toda a página e um respirador cujos pés são reforçados com o lápis “para não cair, senão meu pai não respira”.(sic). Desenho colorido, assinado e finalizado, vai para o Box do pai onde existem vários outros desenhos seus. Começo a construir com ele uma relação de confiança e verdade( transferencial): tudo que conversarmos é segredo e tudo que acontecer com seu pai, de bem ou de mal, ele será participado. Y. leva isso muito a sério e passa a me colocar no lugar do sujeito suposto saber, aquele a quem ele endereça seus sonhos, confia seus medos infantis, certifica que seu pai esteja bem cuidado.  “ Você promete que meu pai vai ser bem tratado?”.“ Falei para minha mãe que eu só conto isso para você.”.“ Depois que converso com você eu fico melhor.”.      

Surge a possibilidade dele entrar no CTI e visitar o pai que demanda vê-lo. A coordenação libera sua entrada desde que ele seja acompanhado pela Psicologia. Primeira grande exceção: criança não entra em CTI antes dos 12 anos de idade.Não tive a menor dúvida em bancar a entrada dele. Sabia da necessidade do encontro com a realidade, da importância disto para a significação desta vivência muito colorida no imaginário. Afinal, havia três meses que não via o pai. O que sabia, o que desenhou, eram informações de outras pessoas. Era ver para crer, era certificar-se que o pai estava lá. E a partir disto, elaborar mais um pouquinho do que tanto lhe assustava. Converso com Y., marcamos uma nova consulta antes dele entrar no CTI. 

Muita ansiedade, expectativa e um sonho novo: o pai sairia andando do CTI e o levaria passear. Explico, sem querer plagiar Freud, que sonho é a realização de um desejo. Mas que a realidade muitas vezes não condiz com o que se deseja. E o sonho da voz? Tinha sumido desde a consulta anterior. Ele explicou para a mãe que, caso ela sonhasse pesadelos, era só dizer em voz alta que eram imaginação. Pronto! Os sonhos ruins desapareceram.Explico o que ele vai encontrar, como seu pai estaria cheio de tubos e fios, que falaria com dificuldade, mas que queria muito vê-lo. Ele me pergunta se pode mostrar o baralho dos Transformers e contar o quanto tinha evoluído na escrita: “ Já consigo escrever em cima da linha como ele me ensinou”. Digo para ser espontâneo e ele me responde que só não iria chorar.Tinha que ser forte perto do pai. Sugiro que ele ficaria sozinho no Box e que quando precisasse de mim era só chamar. Mas ele prefere que eu fique com ele e entra comigo de mãos dadas. Momento de comoção. Técnicas e enfermeiros chorando, alunos de fisioterapia fazendo fila para ver o menino entrar. “Nossa, é a cara do pai…” “Que menino lindo!…”.

Discutiu-se muito o que Y. suscitou na equipe o que se esperava dele: ser o objeto capaz de acelerar a recuperação do pai. Por várias vezes tive que negar sua entrada por não ser demanda dele nem do pai, mas da equipe. Até seu aniversário seria comemorado no CTI, com balão e bolo. Mas, isto não se discute agora…e sim junto com as outras colegas envolvidas no caso. Agora é sua primeira visita ao pai, o seu momento com ele.  Logo quando chega no leito, tira o baralho do bolso e esboça um sorriso. Precisa de um tempo e de um meio para acessar o pai. AXO começa a chorar deixando Y. incomodado. Explico que é normal a reação. E que se ele quisesse também poderia chorar e tocar seu pai. Autorizado, chora. Dali uns minutos, seca as lágrimas e põe-se a contar suas histórias. Fica bastante tempo sozinho e depois com a mãe. Regride quando na presença dela e me explica depois que era a alegria de estarem os três juntos. “Vejo vida nos olhos do meu pai!”.(sic)Saio com ele e elaboramos juntos a experiência. Já sai querendo voltar, e quando peço que diga o que sente ele responde: “ não tenho palavras para explicar”. Explicar o que não tem muito sentido. Realmente, faltam palavras.  Y. mantém contato comigo por telefone sempre que quer me contar alguma coisa. Seja nota da escola ou briga com o primo (seu saco de pancadas, como o chama). Se ele não telefona, eu ligo. Pergunto dele e das notícias que tem do pai. Sei que ele não pergunta nada para a mãe, mas presta atenção nas suas conversas e nas suas feições. A psicóloga da mãe orienta que ela participe o menino das pioras e melhoras. Ele está seguro de que é incluído nesta história. O atendimento seguinte se dá depois de uma piora do quadro. O pai regride no tratamento e quando Y. vai vê-lo, não gosta muito do que vê. Faz o mesmo desenho da primeira vez em dimensões menores.

A cama pequena no centro da página, com o corpo do pai menor, careca e o respirador com os pés mais reforçados. Inclui o enfermeiro, a mesa com remédios, uma janela por onde entra luz e uma porta: a porta da saída, que um dia vai abrir para seu pai passar. Este desenho não tem cor. Só seu nome é escrito em azul, cor do time que o pai torce. A careca me chamou atenção e Y. comenta: “eu estou deixando meu cabelo crescer e o do meu pai está careca porque ele está fraco” (sic). Repito a frase e ele ri, dizendo que um dia seu pai terá cabelo de novo. Mantemos o contato e ele me liga pedindo para ver o pai porque é seu aniversário. Não foi possível atender seu pedido. O pai piora demais nesta semana. Y. conclui que é melhor ir ao clube, já que é seu dia e ele quer estar feliz.  Quando AXO melhora, quer ver o filho. Marcamos para um feriado, mas a visita logra.  Y está com conjuntivite e não pode entrar no CTI. Percebendo sua frustração e uma fantasia subjacente de que algo não vai bem, sugiro tirar uma foto do pai e mostrar para ele. “ Nossa Renata! Que idéia ótima!”(sic). Peço licença à médica e ao pai, tiro a foto e levo para ele. Faço o mesmo com o menino.

E ambos se encontram mesmo que simbolicamente.O desenho desta vez parece muito com o anterior. Mas pelo menos há cor e um pai maior, ainda ligado ao grande respirador.Pergunta-me se quando o pai morrer ele pode ficar com ele no coração. Digo que sim, claro que pode. Mas que agora ele estava bem, e mesmo bem, o tinha no coração.Se ele pudesse falar hoje com o pai, o que falaria? Falaria do seu desejo de jogar futebol como ele antes de “ganhar” a bengala. Y. dá conta de identificar-se com o pai um pouco mais fortalecido.  AXO entra num processo de melhora onde aparece a possibilidade de alta. Y. fica radiante e pede mais uma visita. Lê no boletim “ estável” e percebe o que a palavra significa. Fala-me das fases do pai: muito grave, grave e estável. Estar estável era estar melhor!Acha que ele ia sair pela porta, dirigir seu carro e ir para casa, como no sonho anterior. Explico que não. Ainda havia a fase do andar, da recuperação ainda por vir. Y. não gosta muito da idéia e me pergunta se ele pode ficar muito grave de novo. Desta vez nem quis desenhar. Estava excitado, agitado, falando mais que nunca, fazendo planos com os pais. O pai pede que ele saia para ficar sozinho com a mãe. Y. sai muito mais agitado, querendo saber o que eles conversariam. Pergunto para ele o que sente naquela hora. Não tem palavras. Tento nomear. Quando falo ciúme ele responde: “ah, sou filho dele há muito tempo, não preciso ter ciúmes”. Respondo que ela é a mulher dele também há muito tempo e eles precisam conversar.Com a volta do pai, os lugares teriam que ser definidos. Trabalharia isto mais tarde, quando fosse o momento oportuno.

AXO vai para o andar. A enfermagem já autoriza uma festa de Natal para a família. Y. fala com o pai pelo telefone e marca uma grande visita no final de semana. AXO pára. Parada cardíaca que o leva de volta para o CTI. Minha preocupação com Y. nunca foi tão grande.  Ele teria que se reencontrar com a possibilidade da perda e com o boletim Muito grave.Converso com a mãe depois que ela explica para ele o quadro. Conta-me que Y. sabia da possibilidade do pai voltar, mas que ele ficaria estável novamente e tudo acabaria bem.Acho por bem atende-lo no dia seguinte pela manhã. Y. me abraça forte, chora (afinal, aprendeu a chorar) e me pergunta se pode ver o pai dele. Traz uma pulseirinha com as cores do natal para dar sorte ao pai.  Conversamos muito, tentei traze-lo para a realidade por mais que insistisse em fugir. Que agora ele teria que pensar num retrocesso do pai, como quando alguém não passa de ano e tem que repetir tudo que foi ensinado. Que o boletim dizia muito grave, mas eu arriscaria dizer Muito muito muito grave. E que a vida do pai estava em três mãos: de Deus, dos médicos no que ele interrompe: e da psicóloga? Percebo como era importante estar ali com ele naquele momento. Se a vida do pai eu não podia salvar, a dele eu podia dar sentido e apoio diante do real da morte. Peço permissão ao médico e entro com ele e a mãe.Y. verbaliza que o pai está mais inchado, voltou para o respirador, tem mais tubos e está dormindo. Ou seja: realmente piorou.Não demora lá dentro. Sente-se incomodado como da primeira vez. Pede que eu coloque a pulseira em algum lugar porque no pulso não cabe. Deixo na cabeceira e saímos juntos. Fechamos o atendimento muito brevemente. Ele não queria falar muita coisa. Brincava com o baralho e pedia para ir para casa. Na mesma tarde, AXO faleceu. Os técnicos responsáveis me falam da angústia na hora da visita, do medo que ele morresse em frente ao menino, pois ele estava quase parando. Não sei ao certo o que me fez marcar a visita na parte da manhã. Mas, seja lá qual for a resposta, criei a oportunidade de Y. ver o pai ainda vivo mas com todos os indicativos de que estava morrendo. Quando ligam para casa e chamam a mãe ao hospital ele sabe que algo ruim aconteceu.

“Mãe, o que aconteceu com meu pai?”.(sic).  À noite falo com ele pelo telefone.Chorando muito, diz estar não muito ótimo. Que estava doendo muito. Que a mãe também estava chorando, mas que o pai estava melhor agora, num lugar sem dor e sofrimento.Lembro a pergunta que me fez, de leva-lo no coração. E que onde quer que ele esteja, eles continuariam sendo pai e filho. Y. me pergunta se deve ir ao velório. Retorno a pergunta e ele diz que quer ir. Que tinha algumas coisas para dizer ao pai. Despeço-me dele, digo que ligo no dia seguinte e, como havíamos combinado, ele podia me ligar a hora que quisesse. No dia seguinte ligo mas Y. está na rua brincando. A mãe conta que ele foi ao velório, levou uma flor, despediu-se e quis ir embora.Pronto. Era como se ele dissesse: por hora basta! Passada uma semana liguei para ele.Muito receptivo, diz estar melhor. Mas ainda não quer conversar sobre o pai.Respeito o momento dele.Tempo de elaborar e sofrer as dores da perda. Tenho notícias que Y. anda negando a morte. Vou esperar a psicóloga da mãe atende-la, dizer da necessidade dele ser atendido e marcar um horário na próxima semana.

Ainda temos um grande caminho a percorrer. A elaboração da morte é sem fim. Mas tendo vivido a experiência de forma tão intensa e implicado no processo, Y. vai dar conta de lidar com seus fantasmas, assim como aprendeu a lidar com a voz do horror, vinha lidando com a fraqueza do pai que não queria se tratar “mesmo se ele tomasse adoçante, ele bebia leite que não era light!” (sic) e com as incertezas do boletim. Num certo momento ele me disse ser grato por tudo o que eu estava fazendo por ele.Agora é a minha vez de agradecer a oportunidade única de tê-lo como paciente.        

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