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Origem e conceitos básicos da fenomenologia

O presente texto tem como propósito uma apresentação da fenomenologia como ela mesma se desenhou na historia dos saberes: corrente advinda da filosofia. Para tanto, serão abordados não só os conceitos básicos abrangidos por essa disciplina filosófica, mas, também, os autores que contribuíram para a fundamentação e o delineamento desse sistema de pensamento. Assim, a exposição que ora se inicia se apresenta como uma conexão indireta à Psicologia, pois, sendo a Daseinsanalyse fruto dessa filosofia, a compreensão de suas origens é de muito pertinente. Ou seja, reclama a retomada do saber sistêmico que alicerça esta prática psicológica.
[left]No âmbito da história da filosofia, o termo fenomenologia é muito anterior a Husserl e transita na obra de grandes pensadores.

[i]“A expressão ‘fenomenologia’ aparece pela primeira vez no século XVIII na escola de Christian Wolff, no Neues Oragnon de Lambert, diretamente ligada à desenvolvimentos análogos populares naquela época, tais como dianologia e alethiologia, e significava a própria teoria da ilusão, uma doutrina para evitar as ilusões. Algo parecido aparece em Kant. Em uma carta à Johann Heinrich Lambert, ele escreve: ‘Isso (a fenomenologia) aparece de um modo bastante particular, como uma disciplina propedêutica que deve preceder a metafísica, onde os valores e limites do principio da sensibilidade são detereminados.’ Mais tarde, ‘fenomenologia’ é título da maior obra de Hegel. (…) ‘Fenomenologia’ aparece também nas conferencias de Franz Bretano acerca da metafísica.” [/i](Heidegger, 2005a.:3)

Todo caminho traçado pelo sentido da expressão não rejeitava o passado ao dar um passo à frente. Desde o tempo em que foi apresentado o termo fenomenologia, suas conceituações se transformaram sem descarte ou substituições. Trata-se de uma maneira de pensar que procura tanto evitar as ilusões quanto driblar a superficialidade da metafísica em relação à compreensão do saber pelos sentidos. Desta forma, ao propor seu conceito de fenomenologia, Edmund Husserl o apresenta como um contraponto à crise das ciências modernas, a saber, o naturalismo e o psicologismo puramente empirista emergente na época, que desejava ser a base de todas as ciências humanas. A fenomenologia husserliana difere das constituídas por Kant e Hegel, de modo estrutural, isto é, no que diz respeito à própria questão do ser ou, ainda, em relação a uma teoria do ser absoluto ou ontologia.

[i]“Se, no entanto, compararmos Husserl a Kant e a Hegel, com os quais seria permitido aproximá-lo quanto aos vários pontos particulares, podemos notar que, com respeito ao problema ontológico, sua tentativa representa algo como uma terceira via: enquanto a fenomenologia de tipo kantiana concebe o ser como o que limita a pretensão do fenômeno ao mesmo tempo em que ele próprio permanece fora de alcance, enquanto inversamente, na fenomenologia hegeliana, o fenômeno é reabsorvido num conhecimento sistemático do ser, a fenomenologia husserliana se propõe como fazendo ela própria, as vezes, de ontologia pois, segundo Husserl, o sentido do ser e o fenômeno não podem ser dissociados. Husserl procura substituir uma fenomenologia limitada por uma ontologia impossível e outra que absorve e ultrapassa a fenomenologia por uma fenomenologia que dispenda a ontologia como disciplina distinta, que seja, pois, a sua maneira, ontologia – ciência do ser.”[/i] (Dartigues, 1992.:4)

Com isso, a base da idéia da fenomenologia de Husserl é o próprio afronte à tradição metafísica: contraria a separação estrutural das coisas do mundo, da consciência, do espírito e do saber em [b]sujeito [/b]e [b]objeto[/b]. Em outras palavras, Husserl motivado pela inquietude da insatisfação com a superficialidade das ciências modernas e a tradição metafísica, que há tempos fechava-se em construções teóricas e interpretações antecipadas, propõe seu método investigativo pautado na extinção do dualismo tradicional que cristaliza e segmenta os entes como coisas e o ser destes como um ente também. No caso, tudo passa a ser estratificado para objetificar, para ser capaz de conhecer e, dessa forma, teorizar para saber, separando o ser do ente e, consequentemente, o fenômeno ele mesmo de seu sentido/essência primordial.

Mas, se Husserl desafia toda tradição filosófica em função de sua insatisfação com a crise instalada nas ciências do homem em que sujeito e objeto se separam para assim promover o conhecimento do mundo e das coisas, o que de novo é proposto pelo filósofo, como um método rigoroso e, ao mesmo tempo, inovador no sentido de propiciar o conhecimento ou fato de conhecer e de fazer ciência? O método fenomenológico husserliano apresenta a fenomenologia como uma filosofia de rigor e propõe a observação e descrição prévias do fenômeno, sem que aquele para o qual o fenômeno se mostra esteja imerso em seus pré-juizos e pré-conceitos. Somente de posse desta apreensão é possível teorizar e interpretar aquilo que se mostra como tal. A necessidade desta apreensão primeira do aparecer daquele que se mostra nele mesmo – o fenômeno – foi questionada, e a resposta teve como argumento o próprio fenômeno e para o que este é a via de acesso, ou seja, procede ao concreto. Apenas a partir da manifestação fenomenal apreende-se sua essência e, uma vez apreendida sua essência, automaticamente abre-se a via de acesso ao ser, o qual, por sua vez, é a proposta primeira da ontologia. Husserl evidencia, pelo seu método, que não se pode chegar ao ser dos entes sem compreendê-los, os entes, enquanto fenômenos, como aquilo que se mostra e se faz ver nele mesmo. (Heidegger, 2005a)

Munido dessas primeiras noções acerca da compreensão do fenômeno, Husserl propõe, de modo sintético, conceitos chaves para a compreensão dessa linha de pensamento. Cabe observar que a fundamentação desse método leva em conta o aparecer do fenômeno para uma dada consciência, e que esta consciência não é, tal qual a proposta de Freud ([1995]1895/1950), uma instância psíquica. No caso, “consciência” é compreendida enquanto consciência intencional, conceito concebido por Franz Brentano (1838-1917) e batizado por seu aluno Husserl. Esta consciência é sempre consciência de… Logo, ao se mostrar para uma consciência, o fenômeno se revela para uma consciência dele mesmo, ou seja, uma consciência de …, um fenômeno.

Os conceitos chaves acima referidos são, juntamente com a consciência intencional, a chamada [b]redução fenomenológica[/b], considerada, possivelmente, como a máxima husserliana – [b]voltar às coisas mesmas[/b]. O termo grego para a noção “voltar às coisas mesmas” é a [i]epoché[/i]. Este retorno é proposto não como a condução do humano a uma pureza de consciência inacessível, mas sim tal qual um retornar às coisas mesmas, ao [i]Lebenswelt[/i] (mundo da vida), como voltar ao berço do sentido do fenômeno observado. Ou seja, a e[i]poché[/i] é, agora, voltar-se para o fenômeno não com uma pureza de olhar utópica, mas de modo a encará-lo com a ciência de estar inserido num mundo em busca de seu sentido originário. Nas palavras de Maurice Merleau-Ponty,

[i]“Retornar às coisas mesmas é retornar a este mundo anterior ao conhecimento do qual o conhecimento sempre fala, e em relação ao qual toda determinação cientifica é abstrata, significativa e dependente, como a geografia em relação à paisagem – primeiramente nos aprendemos o que é uma floresta, um prado ou um riacho. Este movimento é absolutamente distinto do retorno idealista à consciência, e a exigência de uma descrição pura exclui tanto o procedimento da analise reflexiva quanto o da explicação cientifica”[/i] (Merleau-Ponty, 2006 [1945].:4).

Muitos autores, posteriores a Husserl, explicitaram seu método de modo claro e objetivo, como, por exemplo, o fez Merleau-Ponty. Além de elucidar a fenomenologia conceitualmente, o francês apresenta as razões de Husserl ao formalizar este método, que sintetizam, como já foi dito, sua insatisfação em face da crise nas ciências humanas.

[i]“Desde seus primórdios, a fenomenologia se apresentou como uma tentativa para resolver um problema, não de uma seita, mas talvez o problema do século: problema que se punha desde 1900 para todo o mundo e que ainda hoje é colocado. Com efeito, o esforço filosófico de Husserl, em seu espírito, destinou-se a resolver, simultaneamente, uma crise das ciências do homem e uma crise das ciências simplesmente, da qual ainda não escapamos.”[/i] (Merleau-Ponty, 1973.:1)

Outro discípulo de Husserl, que adota o método de investigação fenomenológico em sua obra, é Martin Heidegger. Em seu principal escrito, [i]“Ser e Tempo”[/i], o filósofo promove uma ontologia acerca da existência humana, e, para tanto, a fenomenologia é empregada enquanto método. Heidegger considera que a fenomenologia é o [i]“deixar e fazer ver por si mesmo aquilo que se mostra, tal com se mostra a partir de si mesmo. É este o sentido formal da pesquisa que traz o nome de fenomenologia (…)”[/i] (Heidegger, 2005b [1927].:65) Com isso, o filósofo aprimora a definição inicial, apresentando, então, a fenomenologia como sendo a ciência dos fenômenos, a qual deve apreender os objetos.

Esta ultima afirmação parece incoerente ao pensarmos no que foi dito de antemão acerca da ontologia e do problema do ser. Como a fenomenologia, ciência investigativa dos fenômenos na busca por suas essências, pode ser considerada como aquela que deve apreender os objetos, isto é, os entes? Ao dar-se conta do ente enquanto algo que aparece a uma dada consciência intencional, se atinge, ou melhor, se pode chegar ao ser dele próprio, uma vez que o caminho para o ser dos entes é traçado e firmado em sua base nos entes eles mesmos. Retomando, somente pelo ente chega-se ao ser e, ao mostrar-se por si mesmo, o ente possibilita o encontro com o ser e, assim, se revela, também, um fenômeno.

Desse modo, pode-se dizer que a fenomenologia é um método para tornar manifesta, a partir do discurso ([i]logos[/i]), a essências (ousia) das verdades desveladas ([i]alethéia[/i]), pelo aparecer dos fenômenos ([i]phaenomenon[/i]). (Heidegger, [2005]b 1927)

Jean-Paul Sartre (1905-1980), filósofo existencialista, romancista e ativista político, foi outro grande estudioso e discípulo da fenomenologia husserliana. Em seus estudos, o filósofo apreende a teorização de Husserl acerca do fenômeno e do ser, que não caminham, de maneira alguma, separados. Assim, reportando-se à obra capital de Heidegger, a qual, de modo mais amplo, se alicerça na idéia de Husserl a respeito de uma ontologia, Sartre escreve, em 1943, [i]“O ser e o nada – Ensaio de ontologia fenomenológica”[/i]. (Dartigues, 1992)

Em síntese, é possível dizer que a fenomenologia, enquanto terminologia ou nomenclatura está presente na história da filosofia e das ciências humanas há muitos séculos. No entanto, a proposta fenomenológica é consideravelmente mais jovem. Cunhada por Husserl em 1900, na obra [i]“Investigações lógicas”[/i], a fenomenologia enquanto ciência dos fenômenos, aquela que por meio daquilo que se mostra a partir de si mesmo pretende o acesso ao ser, se resignificou desde seu início, até mesmo por seu criador, que já a enxergava como uma ontologia. [i]“A fenomenologia transcendental, sistemática e plenamente desenvolvida, é o eo ispo uma autentica ontologia universal”.[/i] (Husserl, 2001.:132) Nesta resignificação, contemporâneos do pensamento husserliano vieram a acrescentar contribuições ao método, atualizando-o, pela sua inserção no âmbito da filosofia da existência, o que, consequentemente, veio a tornar possível sua introdução no universo psicológico. Em outras palavras, tal método veio a se constituir como o elemento que proporcionou o estabelecimento da ligação entre a filosofia da existência e a psicologia; ponte que permitiu a comunicação entre duas áreas do conhecimento. Assim, pode-se dizer que o sentido da fenomenologia não se altera diante do tempo e/ou pela sucessão de olhares que a tomam como objeto e, portanto, vem a lhe conferir outros significados sem, entretanto, deixar para trás “suas próprias coisas mesmas”, a máxima original husserliana.

[b]Bibliografia[/b] [b]Dartigues, André.[/b] O que é a fenomenologia?.Trad: Maria José J.G. de Almeida: São Paulo. Ed. Moraes, 1992.

[b]Freud, Sigmund.[/b] Projeto de uma nova psicologia. São Paulo. Ed. Imago, 1995.

[b]Heidegger, Martin.[/b] Introduction to phenomenological research: Indiana. Indiana University Press, 2005a.

[b]_______________[/b]. Ser e Tempo. Trad: Maria Sá Cavalcanti Schuback. São Paulo: Ed. Vozes, 2005b.

[b]Merleau-Ponty[/b], Maurice. Ciencias do homem e fenomenologia. Trad: Salma Tannus Muchail: São Paulo. Ed. Saraiva, 1972.
[b] _______________[/b].Fenomenologia da percepção. Trad: Carlos Alberto Ribeiro de Moura: São Paulo, Martins Fontes, 2006[/left][/left]

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