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A Neurociência do comportamento agressivo – parte I

Introdução

O desenvolvimento analítico de um neurobiólogo implica, ne­cessariamente, que ele considere de maneira isolada um dado processo comportamental e uma estrutura cerebral ou sistema neuronal bem definidos.

Tanto em um caso como em outro, o elemento assim isolado só encontra toda a sua significação quando é ressituado no conjunto dinâmico de que foi dissocia­do em função das necessidades da análise experimental. Além disso, as correlações e – mais raramente – as relações de causa­lidade evidenciadas entre tal fenômeno comportamental e tal mecanismo cerebral devem ser ressituadas, por sua vez, na dialé­tica mais geral e extremamente sutil das relações entre o cére­bro e o comportamento.

Na redação de um trabalho, pode-se seguir o caminho inverso: fornecer, de início, uma visão mais sintética de alguns aspectos essenciais da pro­blemática, servindo a síntese, em seguida, como estrutura de acolhida para os dados mais precisos fornecidos pela análise experimental.

I. As relações entre cérebro e comportamento

Destaco, antes de tudo, ­o caráter recíproco e não unidirecional, dessas relações. Podemos considerar os comportamentos de um organis­mo como a soma de eventos que demarcam e constituem uma história individual. Em se tratando de um organismo humano, essa história individual se inscreve na dupla história de nossa espécie: sua história biológica e sua história sociocultural. A história individual, a um só tempo, mergulha suas raízes nessa dupla história da espécie e lhe enriquece – modestamente – a substância.

O cérebro é, sem dúvida, o gerador dos comportamentos, ­dos acontecimentos de uma história individual, mas é, ele pró­prio, fruto do comportamento, do diálogo com o meio am­biente. Assim, o cérebro humano foi modelado ao longo de toda a história biológica e evolutiva da espécie, que o dotou progressivamente de boa parte de seus meios de expressão e de ação; e as modalidades de funcionamento do cérebro indivi­dual sofrem as influências estruturantes do ambiente sociocul­tural, que fornece ao cérebro boa parte de seus motivos de ação, que ultrapassam amplamente, no Homem, as necessida­des biológicas elementares.

Quando consideramos mais concretamente como o cére­bro da espécie foi e como o cérebro do indivíduo é, em segui­da, modelado pelo comportamento, ou seja, pelas interações com o ambiente, podemos distinguir – a bem da clareza, mas de maneira um tanto artificial – três etapas sucessivas.

1. Filogênese do cérebro humano

Ao longo de toda a história evolutiva de nossa espécie, consti­tuiu-se progressivamente o pool genético que faz com que, ho­je em dia, o óvulo humano fecundado contenha todas as infor­mações necessárias para que se possa desenvolver um cérebro humano (mas, essas informações estão longe de ser suficientes para que um cérebro humano normal se desen­volva efetivamente).

Ainda que muitos dos aspectos da evolu­ção biológica, e, sobretudo de seus mecanismos, permaneçam ainda amplamente controvertidos, não há dúvida de que, no que concerne ao cérebro, são as restrições do diálogo com o meio ambiente que constituem o motor essencial da evolução. A esse respeito, é preciso lembrar que a seleção natural incide sobre organismos inteiros e sobre o conjunto do patrimônio genético de que eles são a expressão, e não sobre este ou aquele gene in­dividual.

Os dados da genética molecular, além disso, indicam que existem, nos diversos ramos da evo­lução das espécies, tipos diferentes de genomas, cada um dos quais correspondendo a uma estratégia coerente de codificação. Em outras palavras, e contrariando o que propõem certos so­ciobiólogos que chegam até a falar em "genes egoístas", uma provocação a Richard Dawkins pela sua metáfora, absolu­tamente não parece – bem ao contrário – que a evolução dos genes individuais no seio de um patrimônio genético se faça in­dependentemente dos outros genes desse mesmo patrimônio.

E, de qualquer modo, entre as bactérias, é bem provável que essa estratégia de codificação coerente se haja estabelecido em proveito da célula, ou seja, do organismo em seu conjunto.

Na filogênese do cérebro, diversos desenvolvimentos apresentam um interesse muito particular:

a) No nível do córtex cerebral, as áreas da associação e o córtex pré-frontal desenvolveram-se consideravelmente, com uma evolução dupla no plano funcional. Por um lado, desen­volveram-se gnosias e praxias cada vez mais complexas, com toda a elaboração cognitiva de que as "entradas" sensitivo­-sensoriais e as "saídas" motoras do cérebro são passíveis de tornar-se objeto. Evidentemente, foi o desenvolvimento da linguagem – falada e escrita – que enriqueceu singularmente as possibilidades de expressão e de interação, assim como as possibilidades de memorização individual e coletiva, Por outro lado, desenvolveram-se, nas interações com o ambiente, as ope­rações de simulação de previsão, com as faculdades de atenção, concentração e iniciativa que isso implica.

b) Essa evolução foi acompanhada por uma lateralização cada vez mais acentuada de certas funções, levando a uma dis­simetria funcional mais extensa dos dois hemisférios cerebrais. Isso decerto reduziu, para essas funções, as possibilidades de compensação, de vicariância, no caso de um ataque ao hemis­fério predominante. Mas talvez tenha permitido uma progres­são mais rápida e mais acentuada, porquanto, pelo menos em parte, independente de um pensamento analítico, lógico e abstrato, por um lado, e de um pensamento mais global, mais intuitivo e mais carregado de emoção, por outro.

c) Um desenvolvimento que também teve sua importân­cia foi o do papel assumido, nas funções motoras do organis­mo, pelo sistema piramidal (constituído pelo feixe piramidal ou feixe corticoespinhal, com todas as suas origens corticais, tanto pré-rolândicas quanto pós-rolândicas). Graças ao contro­le direto que exerce sobre os neurônios motores espinhais, so­bre o "teclado espinhal", o sistema piramidal pode efetuar curto-circuitos nas instruções dos programas pré-comunicados (ao nível do tronco cerebral e da medula) e criar novos progra­mas motores.

E, em vista de também exercer influência sobre os interneurônios situados "rio acima" dos neurônios motores e de ser passível de operar remanejamentos nas redes de cone­xão desses interneurônios, o sistema piramidal controla o con­junto da circuitaria motora e, dessa forma, dispõe do poder de instruí-Ia com novos programas de ação não presentes em seu repertório primitivo, geneticamente pré-programado. Isso é particularmente interessante para a motricidade da mão, que, além disso, foi progressivamente liberada das restrições que lhe impunha a locomoção quadrúpede, e permitiu o desabrocha­mento pleno da destreza manipulatória, graças a uma utiliza­ção independente dos dedos.

2. Ontogênese do cérebro individual

O patrimônio genético contido no zigoto é, simulta­neamente, reflexo do nível de evolução atingido pela espécie e uma das fontes (e não mais a fonte) da especificidade do cére­bro individual que se irá desenvolver a partir desse ovo fecun­dado. Para que se desenvolva efetivamente um cérebro humano normal (ou seja, que reflita plenamente o nível de evolução atingido pela espécie) e para que ele adquira toda a sua especi­ficidade, que se exprimirá nas diferentes dimensões de uma personalidade, são necessárias, em seguida, múltiplas influências estruturantes da experiência, ou seja, interações com o meio.

São numerosos os dados fornecidos pela experimentação animal que evidenciam claramente o papel estruturante desem­penhado pela experiência em todos os níveis de organização, desde o nível das interações celulares até o do diálogo do orga­nismo inteiro com seu ambiente. As noções gerais que decorrem desses dados podem ser extrapoladas sem grande hesitação pa­ra o desenvolvimento do cérebro e do comportamento huma­nos, pois o grau de "plasticidade" no desenvolvimento ontoge­nético só faz aumentar no decurso da evolução filogenética que levou ao cérebro humano.

O desenvolvimento do sistema e da função visuais foi objeto de numerosas pesquisas, em particular no gato. Essas pesquisas evidenciaram perfeitamente o papel desempenhado, respectivamente, pelo genoma e pela experiência. Assim é que as propriedades funcionais elementares do sistema visual, tais como a convergência binocular ou a sensibilidade seletiva para a orientação do estímulo luminoso no espaço (propriedades que podem ser apreendidas pelo registro das respostas bioelé­tricas dos neurônios da área 17 do córtex visual), só se desen­volvem de maneira normal quando o organismo jovem está em condições de explorar ativamente um ambiente visual normal­mente estruturado.

Essa experiência visual é necessária, a um tempo, para que sejam definitivamente mantidas as proprieda­des funcionais que podem começar a desenvolver-se, até deter­minado estágio da ontogênese, na ausência de qualquer expe­riência, e para que se exprimam efetivamente certas potencia­lidades do genoma, que, sem essa influência estruturante da experiência, nem começam a exprimir-se. De modo análogo, foi demonstrado que os ratos criados em uma atmosfera desodorizada apresentavam, na idade adulta, uma sensibilidade olfativa anormalmente reduzida.

Quando se criam ratos em isolamento total e quando eles são assim privados das interações sociais que normalmente man­têm com seus congêneres, provoca-se o aparecimento de anomalias comportamentais, em particular uma excitabilidade anormalmente elevada e um déficit claro em certos processos de inibição comportamental. Essas mesmas anomalias podem ser provocadas, em animais criados em um ambiente social normal, praticando-se uma lesão do septo ou do hipocampo. Assim, po­demos pensar que as interações sociais exercem uma influência estruturante no desenvolvimento do sistema septo-hipocâmpico e que é por intermédio desse sistema que elas repercutem no de­senvolvimento de certas características comportamentais.

Esse exemplo muito simples ilustra bem o caráter recíproco das rela­ções entre o cérebro e o comportamento, pois, de um lado, as interações com o ambiente influenciam nitidamente a maneira pela qual se exprimem, no funcionamento efetivo do sistema septo-hipocâmpico, os programas genéticos que condicionam seu desenvolvimento; mas, por outro lado, é evidente que, em um dado ambiente, as particularidades de funcionamento de origem genética não deixarão de repercutir sobre a maneira pela qual esse sistema será posto em ação nas interações sociais.

Tratarei, mais adiante, do papel provavelmente desem­penhado pelas endorfinas nos processos de ligação interindivi­dual e de coesão social. Seria muito interessante saber em que medida e de que modo, por seu turno, as interações sociais controlam, durante as fases precoces da ontogênese, a produ­ção dessas morfinas endógenas e a sensibilidade dos receptores sobre os quais elas atuam.

3. Constituição dos traços mnésicos da vivência individual

O funcionamento cerebral é amplamente modulado pela vivên­cia individual ou, mais precisamente, pelos traços que ela deixa no cérebro. Assim, é repor­tando-se a esses traços que o cérebro avalia a significação de uma situação e escolhe, para responder a ela, a estratégia apro­priada. Ora, é graças ao próprio comportamento, graças às ex­periências vividas e registradas nas interações com o ambiente que se elabora esse código de referências, que é, simultanea­mente, produto e motor de uma vivência individual.

Igualmente, a propósito desses processos mnésicos, con­vém sublinhar o caráter recíproco das relações entre o cérebro e o comportamento. Pois, se a natureza – isto é, o conteúdo informativo – dos traços que a experiência deixa no cérebro depende das interações concretas com o ambiente, é evidente que a maneira como esses traços se constituem e a maneira pela qual Ihes serão feitas referências, em seguida, na gênese das motivações, dependem de um conjunto de características funcionais do cérebro. Veremos que o funciona­mento perturbado da amígdala, estrutura subcortical do lobo temporal, impede que, no determinismo do comportamento presente, faça-se referência à experiência passada. Outro dado experimental merece ser citado: no camundongo, certos com­portamentos sociais geneticamente pré-programados requerem a influência estruturante de uma experiência social para se exprimirem normalmente; mas essa influência da experiên­cia permanece amplamente inoperante quando privamos regu­larmente os animais do sono paradoxal em seguida a suas inte­rações sociais. Em condições nor­mais, a indução e o desenrolar do sono paradoxal – que parece ser necessário para a eficácia da ação estruturante da experiên­cia – exigem todo um conjunto de condições de ordem neuro­fisiológica e neuroquímica.

Em tudo o que estou expondo, não posso deixar de lado a ênfase na dimensão tempo­ral, evolutiva, "histórica" dos processos levados em conta. E essa dimensão desempenha um papel importante, pois está subjacente aos processos de organização do cérebro e de estruturação do comportamento, assim como dos processos de reorganização e reestruturação que intervêm em certas circuns­tâncias. Além disso, é graças à constituição dos traços mnésicos e à utilização que deles é feita posteriormente que o comporta­mento presente é, a um tempo, uma reatualização parcial da experiência passada e um motor essencial da evolução das mo­tivações dos atos a surgirem. Em outras palavras, graças à cons­tituição e à utilização dos traços mnésicos, o cérebro não é so­mente o gerador de uma história individual, mas é igualmente seu depositário e seu reflexo.

Nas pesquisas de neurobiologia dos comportamen­tos, as restrições ao desenvolvimento analítico conduzem, na maioria das vezes, à comparação entre grupos de animais tão homogêneos quanto possível, estando cada animal, de algum

modo, desinserido de sua vivência individual. Isso leva forçosa­mente a que se subestime o papel desempenhado pela dimen­são histórica na estruturação das relações recíprocas entre o cérebro e o comportamento no animal, e a sugerir, a esse res­peito, a existência de uma diferença ­entre o animal e o Homem. Erroneamente, pois ela é mais aparente do que real, mais de grau do que de natureza.

Mas há uma outra razão, ainda mais importante, que contribui para obscurecer, mais do que para trazer à luz, as con­vergências (cuja existência de modo algum exclui a das diferen­ças) existentes, na realidade, entre o determinismo do compor­tamento animal e o do comportamento humano. Ela reside no fato de que, em biologia comportamental, não se estabelece de maneira suficientemente nítida e explícita a distinção entre os meios de ação de que um organismo dispõe, graças a seu reper­tório comportamental, e os motivos de ação que determinam sua entrada em ação.

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