Introdução
Tanto em um caso como em outro, o elemento assim isolado só encontra toda a sua significação quando é ressituado no conjunto dinâmico de que foi dissociado em função das necessidades da análise experimental. Além disso, as correlações e – mais raramente – as relações de causalidade evidenciadas entre tal fenômeno comportamental e tal mecanismo cerebral devem ser ressituadas, por sua vez, na dialética mais geral e extremamente sutil das relações entre o cérebro e o comportamento.
Na redação de um trabalho, pode-se seguir o caminho inverso: fornecer, de início, uma visão mais sintética de alguns aspectos essenciais da problemática, servindo a síntese, em seguida, como estrutura de acolhida para os dados mais precisos fornecidos pela análise experimental.
Destaco, antes de tudo, o caráter recíproco e não unidirecional, dessas relações. Podemos considerar os comportamentos de um organismo como a soma de eventos que demarcam e constituem uma história individual. Em se tratando de um organismo humano, essa história individual se inscreve na dupla história de nossa espécie: sua história biológica e sua história sociocultural. A história individual, a um só tempo, mergulha suas raízes nessa dupla história da espécie e lhe enriquece – modestamente – a substância.
O cérebro é, sem dúvida, o gerador dos comportamentos, dos acontecimentos de uma história individual, mas é, ele próprio, fruto do comportamento, do diálogo com o meio ambiente. Assim, o cérebro humano foi modelado ao longo de toda a história biológica e evolutiva da espécie, que o dotou progressivamente de boa parte de seus meios de expressão e de ação; e as modalidades de funcionamento do cérebro individual sofrem as influências estruturantes do ambiente sociocultural, que fornece ao cérebro boa parte de seus motivos de ação, que ultrapassam amplamente, no Homem, as necessidades biológicas elementares.
Quando consideramos mais concretamente como o cérebro da espécie foi e como o cérebro do indivíduo é, em seguida, modelado pelo comportamento, ou seja, pelas interações com o ambiente, podemos distinguir – a bem da clareza, mas de maneira um tanto artificial – três etapas sucessivas.
1. Filogênese do cérebro humano
Ao longo de toda a história evolutiva de nossa espécie, constituiu-se progressivamente o pool genético que faz com que, hoje em dia, o óvulo humano fecundado contenha todas as informações necessárias para que se possa desenvolver um cérebro humano (mas, essas informações estão longe de ser suficientes para que um cérebro humano normal se desenvolva efetivamente).
Ainda que muitos dos aspectos da evolução biológica, e, sobretudo de seus mecanismos, permaneçam ainda amplamente controvertidos, não há dúvida de que, no que concerne ao cérebro, são as restrições do diálogo com o meio ambiente que constituem o motor essencial da evolução. A esse respeito, é preciso lembrar que a seleção natural incide sobre organismos inteiros e sobre o conjunto do patrimônio genético de que eles são a expressão, e não sobre este ou aquele gene individual.
Os dados da genética molecular, além disso, indicam que existem, nos diversos ramos da evolução das espécies, tipos diferentes de genomas, cada um dos quais correspondendo a uma estratégia coerente de codificação. Em outras palavras, e contrariando o que propõem certos sociobiólogos que chegam até a falar em "genes egoístas", uma provocação a Richard Dawkins pela sua metáfora, absolutamente não parece – bem ao contrário – que a evolução dos genes individuais no seio de um patrimônio genético se faça independentemente dos outros genes desse mesmo patrimônio.
E, de qualquer modo, entre as bactérias, é bem provável que essa estratégia de codificação coerente se haja estabelecido em proveito da célula, ou seja, do organismo em seu conjunto.
Na filogênese do cérebro, diversos desenvolvimentos apresentam um interesse muito particular:
a) No nível do córtex cerebral, as áreas da associação e o córtex pré-frontal desenvolveram-se consideravelmente, com uma evolução dupla no plano funcional. Por um lado, desenvolveram-se gnosias e praxias cada vez mais complexas, com toda a elaboração cognitiva de que as "entradas" sensitivo-sensoriais e as "saídas" motoras do cérebro são passíveis de tornar-se objeto. Evidentemente, foi o desenvolvimento da linguagem – falada e escrita – que enriqueceu singularmente as possibilidades de expressão e de interação, assim como as possibilidades de memorização individual e coletiva, Por outro lado, desenvolveram-se, nas interações com o ambiente, as operações de simulação de previsão, com as faculdades de atenção, concentração e iniciativa que isso implica.
b) Essa evolução foi acompanhada por uma lateralização cada vez mais acentuada de certas funções, levando a uma dissimetria funcional mais extensa dos dois hemisférios cerebrais. Isso decerto reduziu, para essas funções, as possibilidades de compensação, de vicariância, no caso de um ataque ao hemisfério predominante. Mas talvez tenha permitido uma progressão mais rápida e mais acentuada, porquanto, pelo menos em parte, independente de um pensamento analítico, lógico e abstrato, por um lado, e de um pensamento mais global, mais intuitivo e mais carregado de emoção, por outro.
c) Um desenvolvimento que também teve sua importância foi o do papel assumido, nas funções motoras do organismo, pelo sistema piramidal (constituído pelo feixe piramidal ou feixe corticoespinhal, com todas as suas origens corticais, tanto pré-rolândicas quanto pós-rolândicas). Graças ao controle direto que exerce sobre os neurônios motores espinhais, sobre o "teclado espinhal", o sistema piramidal pode efetuar curto-circuitos nas instruções dos programas pré-comunicados (ao nível do tronco cerebral e da medula) e criar novos programas motores.
E, em vista de também exercer influência sobre os interneurônios situados "rio acima" dos neurônios motores e de ser passível de operar remanejamentos nas redes de conexão desses interneurônios, o sistema piramidal controla o conjunto da circuitaria motora e, dessa forma, dispõe do poder de instruí-Ia com novos programas de ação não presentes em seu repertório primitivo, geneticamente pré-programado. Isso é particularmente interessante para a motricidade da mão, que, além disso, foi progressivamente liberada das restrições que lhe impunha a locomoção quadrúpede, e permitiu o desabrochamento pleno da destreza manipulatória, graças a uma utilização independente dos dedos.
2. Ontogênese do cérebro individual
O patrimônio genético contido no zigoto é, simultaneamente, reflexo do nível de evolução atingido pela espécie e uma das fontes (e não mais a fonte) da especificidade do cérebro individual que se irá desenvolver a partir desse ovo fecundado. Para que se desenvolva efetivamente um cérebro humano normal (ou seja, que reflita plenamente o nível de evolução atingido pela espécie) e para que ele adquira toda a sua especificidade, que se exprimirá nas diferentes dimensões de uma personalidade, são necessárias, em seguida, múltiplas influências estruturantes da experiência, ou seja, interações com o meio.
São numerosos os dados fornecidos pela experimentação animal que evidenciam claramente o papel estruturante desempenhado pela experiência em todos os níveis de organização, desde o nível das interações celulares até o do diálogo do organismo inteiro com seu ambiente. As noções gerais que decorrem desses dados podem ser extrapoladas sem grande hesitação para o desenvolvimento do cérebro e do comportamento humanos, pois o grau de "plasticidade" no desenvolvimento ontogenético só faz aumentar no decurso da evolução filogenética que levou ao cérebro humano.
O desenvolvimento do sistema e da função visuais foi objeto de numerosas pesquisas, em particular no gato. Essas pesquisas evidenciaram perfeitamente o papel desempenhado, respectivamente, pelo genoma e pela experiência. Assim é que as propriedades funcionais elementares do sistema visual, tais como a convergência binocular ou a sensibilidade seletiva para a orientação do estímulo luminoso no espaço (propriedades que podem ser apreendidas pelo registro das respostas bioelétricas dos neurônios da área 17 do córtex visual), só se desenvolvem de maneira normal quando o organismo jovem está em condições de explorar ativamente um ambiente visual normalmente estruturado.
Essa experiência visual é necessária, a um tempo, para que sejam definitivamente mantidas as propriedades funcionais que podem começar a desenvolver-se, até determinado estágio da ontogênese, na ausência de qualquer experiência, e para que se exprimam efetivamente certas potencialidades do genoma, que, sem essa influência estruturante da experiência, nem começam a exprimir-se. De modo análogo, foi demonstrado que os ratos criados em uma atmosfera desodorizada apresentavam, na idade adulta, uma sensibilidade olfativa anormalmente reduzida.
Quando se criam ratos em isolamento total e quando eles são assim privados das interações sociais que normalmente mantêm com seus congêneres, provoca-se o aparecimento de anomalias comportamentais, em particular uma excitabilidade anormalmente elevada e um déficit claro em certos processos de inibição comportamental. Essas mesmas anomalias podem ser provocadas, em animais criados em um ambiente social normal, praticando-se uma lesão do septo ou do hipocampo. Assim, podemos pensar que as interações sociais exercem uma influência estruturante no desenvolvimento do sistema septo-hipocâmpico e que é por intermédio desse sistema que elas repercutem no desenvolvimento de certas características comportamentais.
Esse exemplo muito simples ilustra bem o caráter recíproco das relações entre o cérebro e o comportamento, pois, de um lado, as interações com o ambiente influenciam nitidamente a maneira pela qual se exprimem, no funcionamento efetivo do sistema septo-hipocâmpico, os programas genéticos que condicionam seu desenvolvimento; mas, por outro lado, é evidente que, em um dado ambiente, as particularidades de funcionamento de origem genética não deixarão de repercutir sobre a maneira pela qual esse sistema será posto em ação nas interações sociais.
Tratarei, mais adiante, do papel provavelmente desempenhado pelas endorfinas nos processos de ligação interindividual e de coesão social. Seria muito interessante saber em que medida e de que modo, por seu turno, as interações sociais controlam, durante as fases precoces da ontogênese, a produção dessas morfinas endógenas e a sensibilidade dos receptores sobre os quais elas atuam.
3. Constituição dos traços mnésicos da vivência individual
O funcionamento cerebral é amplamente modulado pela vivência individual ou, mais precisamente, pelos traços que ela deixa no cérebro. Assim, é reportando-se a esses traços que o cérebro avalia a significação de uma situação e escolhe, para responder a ela, a estratégia apropriada. Ora, é graças ao próprio comportamento, graças às experiências vividas e registradas nas interações com o ambiente que se elabora esse código de referências, que é, simultaneamente, produto e motor de uma vivência individual.
Igualmente, a propósito desses processos mnésicos, convém sublinhar o caráter recíproco das relações entre o cérebro e o comportamento. Pois, se a natureza – isto é, o conteúdo informativo – dos traços que a experiência deixa no cérebro depende das interações concretas com o ambiente, é evidente que a maneira como esses traços se constituem e a maneira pela qual Ihes serão feitas referências, em seguida, na gênese das motivações, dependem de um conjunto de características funcionais do cérebro. Veremos que o funcionamento perturbado da amígdala, estrutura subcortical do lobo temporal, impede que, no determinismo do comportamento presente, faça-se referência à experiência passada. Outro dado experimental merece ser citado: no camundongo, certos comportamentos sociais geneticamente pré-programados requerem a influência estruturante de uma experiência social para se exprimirem normalmente; mas essa influência da experiência permanece amplamente inoperante quando privamos regularmente os animais do sono paradoxal em seguida a suas interações sociais. Em condições normais, a indução e o desenrolar do sono paradoxal – que parece ser necessário para a eficácia da ação estruturante da experiência – exigem todo um conjunto de condições de ordem neurofisiológica e neuroquímica.
Em tudo o que estou expondo, não posso deixar de lado a ênfase na dimensão temporal, evolutiva, "histórica" dos processos levados em conta. E essa dimensão desempenha um papel importante, pois está subjacente aos processos de organização do cérebro e de estruturação do comportamento, assim como dos processos de reorganização e reestruturação que intervêm em certas circunstâncias. Além disso, é graças à constituição dos traços mnésicos e à utilização que deles é feita posteriormente que o comportamento presente é, a um tempo, uma reatualização parcial da experiência passada e um motor essencial da evolução das motivações dos atos a surgirem. Em outras palavras, graças à constituição e à utilização dos traços mnésicos, o cérebro não é somente o gerador de uma história individual, mas é igualmente seu depositário e seu reflexo.
Nas pesquisas de neurobiologia dos comportamentos, as restrições ao desenvolvimento analítico conduzem, na maioria das vezes, à comparação entre grupos de animais tão homogêneos quanto possível, estando cada animal, de algum
modo, desinserido de sua vivência individual. Isso leva forçosamente a que se subestime o papel desempenhado pela dimensão histórica na estruturação das relações recíprocas entre o cérebro e o comportamento no animal, e a sugerir, a esse respeito, a existência de uma diferença entre o animal e o Homem. Erroneamente, pois ela é mais aparente do que real, mais de grau do que de natureza.
Mas há uma outra razão, ainda mais importante, que contribui para obscurecer, mais do que para trazer à luz, as convergências (cuja existência de modo algum exclui a das diferenças) existentes, na realidade, entre o determinismo do comportamento animal e o do comportamento humano. Ela reside no fato de que, em biologia comportamental, não se estabelece de maneira suficientemente nítida e explícita a distinção entre os meios de ação de que um organismo dispõe, graças a seu repertório comportamental, e os motivos de ação que determinam sua entrada em ação.