RedePsi - Psicologia

Colunistas

A essência da teoria quântica – parte V

Neste artigo veremos alguns dos elementos essen­ciais da teoria quântica, ao qual  será necessário apelar à disposição do leitor psi a aceitar alguns conceitos que vão contra a sua intuição clássica.

Os argumentos apresentados na classificação dos sistemas físicos segundo suas escalas de velocidade e ação, e a posição do ser humano na mesma, têm de ser bem preparados. O caráter contrário à intuição de certos conceitos torna difícil dotar-lhes de um significado, vale dizer, interpretá-los. Pior ainda, para alguns elementos do formalismo existem vá­rias interpretações contraditórias, segundo a postu­ra filosófica adotada. Deixo para depois a discussão detalhada destas interpretações, apre­sentando aqui os conceitos sem insistir demasiado, por ora, em dar-lhes significado.

O conceito de "Estado" tem um papel importante no formalismo de toda teoria física. Na aplicação prá­tica das teorias físicas, qualquer que seja o sistema em estudo,  propõe-se o problema de predizer o valor a se consignar a algum observável do sistema, quando conhecemos algumas de suas propriedades ou, em outras palavras, quando se conhece o estado do sistema.

No formalismo, o estado do sistema está representado por um elemento matemático que, em alguns casos, é uma equação, em outros, um conjunto de números ou um conjunto de funções. O formalismo contém, além disso, receitas matemáticas bem definidas para, a partir do esta­do, poder calcular o valor de qualquer observável. Isto é, conhecendo o estado se pode responder qualquer pergunta relevante sobre o sistema.

Os siste­mas físicos, em geral, evoluem com o tempo, e vão mudando de estado. A teoria deve, então, permitir calcular o estado em qualquer instante, quando o mesmo for conhecido em um instante inicial. As equações matemá­ticas que possibilitam este cálculo são as chamadas "equações de movimento". Para o sistema clássico formado por uma partícula que se move no espaço, o estado é determinado em cada instante pela posição e velo­cidade (ou melhor, o impulso) da mesma. As equações de Newton nos permitem, se conhecemos as forças aplica­das, calcular a posição e a velocidade para qualquer ins­tante posterior.

A partir deste exemplo podemos gene­ralizar estabelecendo que, em um sistema clássico, o estado fica determinado pelo valor que tomam as coorde­nadas generalizadas e os impulsos canônicos correspon­dentes no instante em questão. Recordando, definimos as propriedades do sistema pela assunção de valores aos observáveis, concluímos que o estado de um sistema clássico está fixado pelo conjunto de proprieda­des, que contém todas as coordenadas e os impulsos.

Todos os observáveis de um sistema clássico podem se expressar como funções das coordenadas e dos im­pulsos: A (Qk, Pk). Portanto, conhecendo o estado, ou seja, conhecendo o valor das coordenadas e dos impulsos (Qk = q e Pk = p), podemos calcular o valor destas funções, resultando no conhecimento do valor de todos os observáveis do sistema clássico (A = a, para qualquer observável A).

Seria possível fixar o estado de um sistema quântico da mesma forma? Veremos que não, pois o Princípio de Incerteza (Heisenberg), que apresentare­mos mais adiante, nos proíbe fazê-lo. O estado quântico está determinado por um conjunto de propriedades, mas o mesmo não pode incluir propriedades associadas a todas as coordenadas e impulsos. Se contém uma coor­denada, por exemplo, X = 5, não pode conter o impulso associado à mesma.

Como é possível, então, se o estado quântico não contém todas as coordenadas e impulsos, fazer predições para os observáveis que ele não inclui? Justamente, o mesmo motivo que nos impede unir todos os observáveis em um estado, o Princípio de Incerteza, que é gerado por certa dependência entre estes observáveis que os relaciona e permite fazer as predições. As coordenadas e os impulsos de um sistema quântico, em contraste com o sistema clássico, não são totalmente independentes, mas estão relacionadas de maneira tal que o conhecimento de algumas propriedades permite fazer predições para o resto.

Por sua vez, as predições não são precisas ou exatas, como sucede com a física clássica, mas são probabilísticas ou estatísti­cas. Esta estranha estrutura da teoria quântica será esclarecida mais adiante. Por ora resumamos:

O estado de um sistema clássico está fixado por proprieda­des relacionadas com todas as coordenadas generalizadas e seus impulsos correspondentes. Com estas propriedades se pode calcular o valor de qualquer observável. O estado quântico está fixado somente por algumas proprieda­des, e as predições são probabilísticas.

Para a mecânica quântica, o conjunto de propriedades que participam na determinação do estado não é arbi­trário, já que o Princípio de Incerteza exclui certas propriedades quando algumas outras foram incluídas. Se fazemos um experimento em um sistema quântico para registrar algum de seus observáveis A, e o mesmo possui o valor "a", então o estado do sistema estará carac­terizado pela propriedade A = a.

Por exemplo, se medimos a posição de uma partícula com o resultado, X = 5m, esta propriedade fixa o estado do sistema. Contudo, a de­terminação do estado por meio de um experimento é válida para instantes imediatamente posteriores ao mes­mo, mas não nos brinda nenhuma informação sobre o es­tado do sistema antes e durante o experimento.

Assim, todo experimento implica uma interação entre o sistema que se está observando e certos aparatos de me­dida apropriados. Durante esta interação há um intercâm­bio de energia entre o sistema e o aparato. Por menor que seja o intercâmbio, o processo de medição implica uma ação, que segundo aquela lei fundamental da natureza, não pode ser menor que ħ, a constan­te de Planck.

Pois bem, lembremos o diagrama veloci­dade-inação, que nos indica que os sistemas quânticos estão caracterizados por valores de ação próximos a ħ.

Quer dizer que a perturbação produzida pela medição é tão grande como o próprio sistema. Portanto, qualquer medição em um sistema quântico sofrerá uma perturbação de tal maneira que impossibilitará toda possível informação sobre seu estado antes da medição.

Não é exclusividade da mecânica quântica que a ob­servação altere o objeto observado; o bió­logo sabe bem isso, para observar uma célula o primeiro a fazer é matá-la. O particular da mecânica quântica consiste em que as trocas que esta perturbação pode pro­duzir são tão violentas que ao final da observação não haverá forma de se saber qual era o estado do sistema quando a mesma começou. Destaquemos este fato.

A observação experimental de uma propriedade deixa o sistema quântico no estado correspondente à mes­ma, mas nada diz sobre o estado do sistema antes da observação.

A impossibilidade de saber com certeza experimental qual era o estado de um sistema antes de uma observação ad­quire particular importância no debate filosófico rea­lismo versus positivismo já que, segundo este último, falar das propriedades do sistema ou do estado do mesmo antes de uma observação seria uma frase sem sentido.

Um experimento que determine que a posição de uma par­tícula está caracterizada pela propriedade, X = 5m, não nos autoriza a afirmar que antes da observação a posição era de 5m. Podemos dizer, sim, que essa é a posição imediatamente depois do experimento, mas nada sa­bemos, nem podemos saber, sobre sua situação anterior.

Portanto, para o positivista, toda afirmação acerca da posição da partícula antes do experimento care­ce de sentido, enquanto que para o realista é perfeita­mente legal falar de posição da partícula, ainda que não se lhe possa dotar de um valor determinado.

As duas posturas são irreconciliáveis.

Para o po­sitivista, a experimentação gera a propriedade resultante do dito experimento, que não é a constatação de uma qualidade preexistente no sistema, enquanto que, para o realista, a experimentação põe em evidência alguma característica do sistema, preexistente, ainda que seja impo­ssível assinalar-lhe um valor numérico preciso.

Mencionou-se que entre as propriedades que definem o estado de um sistema quântico não podem apa­recer, simultaneamente, posição e impulso (ou velocidade, ou momento). Tendo em conta que o estado é o resultado de uma observação experimental, se conclui que não deve poder existir nenhum experimento que mostre, ao mesmo tempo, a posição e o impulso de uma partícula. Isto merece uma discussão mais detalhada.

Primeiro devemos corrigir: a mecânica quântica não impede a medição simultânea da posição e do impulso. O que não deve ser possível é que estas medições possuam uma infinita precisão, já que as propriedades, X = 5 e P = 8 implicam um conhecimento exato, sem erro, de ambas. A mecânica clássica não impõe tais restrições, pelo que, dito experimento clássico deve ser possível. Analisemos um experimento deste tipo e tentarei levá-lo ao mundo quântico.

Consideremos um sistema físico clássico composto por um ciclista, que se move ao longo de uma rua. Para medir experimentalmente a posição do ciclista, ou sua velocidade, podemos utilizar uma simples técnica foto­gráfica que consiste em:

(1) eleger um tempo curto de abertura do obturador (diafragma) a fim de medir a posição com precisão, ou

(2) deixar um longo tempo de exposição para medir a velocidade.

Se o tempo de exposição é muito curto, 1/1000 segundo, a foto obtida será muito nítida, o que permite determinar com precisão a posição do ciclista durante a foto, mas a velo­cidade ficará indeterminada. Se, pelo contrário, determinamos um tempo de longa abertura, 1 segundo, a foto não sairá nítida, ficando a posição mal definida, mas nos permite calcular a velocidade dividindo-se o espaço percorrido pelo ciclista, pelo tempo de exposição da foto.

Se contamos com uma máquina fotográfica, então teríamos que optar por medir precisamente a posição, deixando a velocidade incerta, ou então medir a velocidade com alta precisão às custas da imprecisão na posição. Vejam que nos encontramos ante algo parecido ao Princípio de Incerteza, mas que nada tem a ver com a mecânica quântica, já que esta limi­tação se deveria à singeleza desta investigação.

Em algum país que reconheça a importância da investigação científica, disporíamos de duas máquinas fotográficas: uma para determinar a posição e outra para determinar a velocidade, com o que o estado clássico ficaria perfeitamente fixado: X = 5m, V = 1 m/s. Notemos, contudo, que para esta determinação si­multânea da posição e da velocidade fizemos a suposição, válida no exemplo clássico, de que a tirada de  foto, para fixar a posição não modifica a velo­cidade do ciclista e de que, ao fotografá-lo para determi­nar a velocidade, não alteramos a sua posição.

Pelo que já vimos essas suposições não são válidas no sistema quântico. Assim, se em vez de um ciclista tivermos um elétron, as "fotos" se obtêm com fótons de alta energia para conhecer a posição, e de baixa energia para a velocidade. Ora, estes fótons irão modificar brutal­mente o estado do elétron.

Deste modo estaremos frente ao Princípio de Incerteza que de forma inquestionável nos impede de determinar com precisão a posição e o im­pulso de uma partícula quântica. Em um ponto importante do debate entre Bohr e Einstein, este tentou, sem êxito, demonstrar a possibilidade de medir experimentalmente po­sição e impulso com exatidão e de modo simultâneo. Mais adiante voltaremos a este debate.

Acesso à Plataforma

Assine a nossa newsletter