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Entre gatos, experimentos e paradoxos – parte IX

Em artigos anteriores foram vistas a estrutura e a apli­cação desta estranha e vitoriosa teoria que é a mecânica quântica. Estamos tentando educar nossa intuição para tornar aceitáveis alguns elementos surpreendentes que violam nossa expectativa clássica.

Contudo, a nova intuição não é suficiente para resolver as graves dificuldades, que se apresentam relacionadas com o que pareceria ser um assunto simples: o significado da medição.

Dedico a primeira parte deste artigo ao estudo de tais dificul­dades, as quais já foram propostas, mas, infelizmente, nem todas resolvidas. E não porque o leitor psi não esteja capacitado para compreender a sua solução, mas porque não existe nenhum físico que possa oferecê-la. Na segunda parte deste artigo nos ocuparemos da análise de um experimento/argumento apresentado por Einstein, Podolsky e Rosen, que assumiu um papel importante na busca de sig­nificado para a mecânica quântica.

O problema da medição na mecânica quântica é similar a outros problemas que não apresentam nenhum obstáculo, exceto quando alguém tenta aprofundar-se no seu conhecimento. Então as dificuldades se mostram insupe­ráveis. Assim, ocorreu quando pretendi demonstrar algo aparentemente tão simples como a existência do mundo externo. Um investigador disse que, com respeito à medição, os físicos se dividem em dois grupos: os que não encontram nenhum problema e os que encontram um problema que não tem solução.

A medição em física clássica não levanta dificuldades tão graves como as que aparecem na medição quânti­ca. Para compreender esta diferença consideremos a estrutura idealizada com que se pode descrever toda medição. Nela intervêm três partes: um sistema físi­co S, com algum observável B que se deseja medir; um apa­relho de medição A, desenhado para medir dito observável, com um visor onde aparecem os números b os quais mostram a medição; finalmente, um observador O, que lê o valor b no visor do aparelho e faz a inferência "o sistema S tem a propriedade B = b".

No processo de medição, o sistema S e o aparelho A in­teragem modificando-se mutuamente. No caso clássi­co, o sistema vai atuar sobre o aparelho e vai modifi­cá-lo até aparecer no visor o valor b. O aparelho atua sobre o observador que, modificando seu estado de consciência, adquire o conhecimento desse valor. A ação do sistema sobre o aparelho e a desse sobre o observador deverão aparecer representadas por vetores (flechas). A transitividade dessas flechas permite ao observador fazer uma inferência sobre o valor do observável B no sistema, saltando o aparelho. Neste caso clássico consideramos desprezível a ação do aparelho sobre o sistema, o que se justifica pelos enormes valores de ação que caracterizam tanto um como outro.

Tal con­sideração não se justifica quando o siste­ma é quântico. Nesse caso somos obrigados a incluir um vetor (flecha) que vai do aparelho ao sistema, rompendo-se a transitividade. Como conseqüência, a inferência que o observador faz, já não envolve somente ao sistema, mas à combinação do aparelho e do sistema, complicação que, geralmente, se esquece. Sem ir mais longe, quando observa­mos a posição de uma partícula e dizemos que X = 5m, iso é uma propriedade da partícula. Para sermos rigorosos deve­ríamos dizer que o caracterizado pelo valor 5 no vi­sor do aparelho é a combinação da partícula mais o aparelho de medição. Os que adotam uma postura filosófica positivista não enfrentam esta dificuldade, porque, de qualquer maneira, se abstêm de qualquer frase que faça alusão ao sistema físico como entidade existente indepen­dentemente do observador. Para eles, X = 5 é a "única realidade", que não pode ser atribuída a nenhuma outra rea­lidade mais além do fenômeno imediato. Em troca, a dificuldade pode complicar-se se levarmos em conta que não é possível excluir com absoluta certeza a existência de al­guma ação do observador sobre o aparelho, já que am­bos podem ser considerados também sistemas quânticos.

Outra questão a considerar é que o limite entre o ob­servador e o aparelho pode ser deslocado, tomando os olhos do físico, sua retina, o nervo óptico, e todo o resto como parte do aparelho, de modo que só ficaria a consciência como único observador. Não vamos  insistir nestas dificuldades. É de supor que se algum leitor psi pensava que a medição não é problema, já mudou sua opinião. Se não o fez, mais motivos de confu­são serão apresentados.

Muitas dificuldades associadas à medição se devem a que, em alguns casos, a mecânica quântica não assinala valores precisos aos observáveis, enquanto que o resul­tado de uma medição é sempre um valor preciso. Já vimos, entre os aspectos essenciais da teoria quân­tica, assinalando que a transição entre o estado inicial do sistema, prévio à medição, caracterizado por valores difusos, e o estado final do mesmo, onde o observável adquire exatidão, implica uma mudança violenta, denomi­nada o "colapso do estado", cujas causas não estão ainda iden­tificadas.

Para ilustrá-Io, consideremos novamente o simples sis­tema de uma partícula em uma dimensão. Suponhamos que o estado do sistema se caracteriza pela propriedade de estar em repouso, ou seja, P = 0, com ∆P muito pequeno (ou zero). O princípio de incerteza dita que, neste estado, ∆X deve ser muito grande (ou infinito). A posição não tem associado um valor preciso, mas difuso. Em lugar de con­siderar a posição X, consideremos outro observável mais simples relacionado com ela que podemos denominar "quirialidade" Q, e que definimos da seguinte maneira: se a partícula está posicionada "à direita" de certo ponto (por exemplo, X = 0), dizemos que o sistema tem qui­rialidade igual a um, Q = 1, e se está "à esquerda", Q = -­1.

O pedante nome eleito, quirialidade, faz alusão à "mão" (cheir, em grego) direita ou esquerda. No estado mencionado, no qual a posição da partícula não está bem definida, a quirialidade, tampouco tem asso­ciado um valor preciso; demos uma probabilidade 1/2 para Q = 1 e 1/2 para Q = – 1, vale dizer, 50% de probabilida­de à direita e 50% à esquerda. A partícula não está nem à direita nem à esquerda, já que as proprieda­des Q = 1 e Q = – 1 não são nem POP, nem PONP, mas PP.

Façamos agora um experimento para deter­minar a quirialidade que resulta em Q = 1, isto é, a partícula fica à direita depois do experimento, sendo, neste novo estado, Q = 1 uma POP e Q = – 1 uma PONP. O experimento, por mais simples que seja, produziu algo brutal que equivale a destruir a tendência da partícula existir à esquerda e trasladar-la à direita. O estado passou violentamente ("colapsou") de estar igual­mente distribuído à direita e à esquerda para estar dis­tribuído com certeza à direita.

Para ressaltar dramaticamente a violenta transição que se produz na medição, L. de Broglie propôs uma si­tuação similar à descrita mais acima que consiste em colocar a partícula em um tubo, cortá-lo pela metade e enviar as partes, tapadas, uma a Tóquio e a outra a Paris. A observação da partícula em Paris deve produzir ins­tantaneamente a aniquilação da semi-existência da mesma em Tóquio e a transformação da semi-existência em Paris a uma existência total. É um sapo difícil de engolir!

Uma tentativa para tornar isso tudo mais aceitável seria ado­tar a postura de que o princípio de incerteza não implica uma limitação "ontológica", mas sim "gnoseológica", isto é, que a partícula se tem posição bem definida, além do impulso, mas a mecânica quântica não nos permite calculá-la. A partícula já estava em Paris antes que a observemos e o "colapso" não se produz no estado do sistema, mas em nosso conhecimento do mesmo. Esta solução parece bastante aceitável; contudo, mais adiante veremos que, em outro nível, tem as mesmas di­ficuldades que a opção ontológica. A suposição de que a mecânica quântica é correta, mas não pode calcular a posição com exatidão, implica a existência de variáveis ocultas que determinam os valores exatos para todos os observáveis, ainda os relacionados pelo princípio de in­certeza. Veremos que ditas variáveis não podem ser "lo­cais", pelo que a observação feita em Paris deve modificar o valor das mesmas em Tóquio. É o mesmo sapo a engolir.

O exemplo anterior mostrava que a medição deve ter efeitos catastróficos no estado do sistema quando se mede algum observável cujas propriedades não são POP, nem PONP, mas PP em dito estado. Mais surpreendente é este fato quando a medição não implica nenhuma ação fí­sica conhecida sobre o sistema, como acontece nos expe­rimentos de resultado negativo. Como exemplo, ana­lisemos uma versão simplificada de uma proposta de Renniger.

Suponha que coloquemos no meio de um tubo, cujos dois extremos estão abertos, um átomo que, em um instante conhecido t0, envia um fóton. Recordemos que um fóton é uma partícula de luz que viaja à velocidade da luz, tem massa nula e é caracte­rístico do estado corpuscular das "ondas" eletromag­néticas. O instante t0 de radiação do fóton pode ser conhecido mediante um detector próximo ao átomo. Este fóton tem igual probabilidade de ser emitido à direita ou à esquerda, pelo que a quirialidade Q do mesmo é incerta, sendo as propriedades Q = 1 e Q = -1, PP.

Suponhamos que só na saída da direita do tubo se coloque um detector que indicará, no instan­te t1 se o fóton sai pela direita. O instante t1 se conhe­ce a partir de t0 calculando o tempo que demora o fóton, à velocidade da luz, em alcançar a saída do tubo. Se no instante t1 o detector indica que o fóton saiu pela direita, se produz o colapso do estado no qual Q = 1 e Q = -1 são PP, ao estado no qual Q = 1 é POP. Isto é similar ao visto anteriormente e podemos pensar que as modificações produzidas no detector partici­param para causar a brutal transição. Contudo, suponhamos agora que, no instante t1 o detector não indica nada, fica em silêncio. Significa que o fóton viaja para a esquerda e se produz o colapso desde o estado on­de Q = 1 e Q = -1 eram PP, ao estado onde Q = -1, é POP, porém não houve nenhuma interação física conhecida.

Deduzimos então que não é possível responsabilizar do colapso às transformações físicas que têm lu­gar nos instrumentos de medida. A única va­riação é o conhecimento do físico que controla o detec­tor. É possível que a consciência do observador seja o que produz o colapso? A análise desta questão levou a vários paradoxos, sendo os mais famosos os de "o gato de Schrödinger" e "o amigo de Wigner". Vejamos o primeiro.

Suponhamos um sistema similar ao anterior, com um áto­mo em um tubo que emitirá, em t0, um fóton que pode di­rigir-se com igual probabilidade para a direita ou para a esquerda. À direita temos o detector que, no caso de sair o fóton por esse lado, acionará um mecanis­mo que rompa um frasco cheio de veneno, que matará um gato que se encontra próximo. Se o fóton escapa para a esquerda, o gato vive. O estado com Q = 1 é equivalente a "gato morto", e com Q = -1 a "gato vivo". Todo este  dispositivo está tapado. Uma vez transco­rrido um longo tempo depois de t1 , ou seja, bastante tem­po depois de que o fóton haja saído do tubo, não se sabe ou não está definido por onde o físico faz a ob­servação, que consiste em destapar o dispositivo experi­mental e tomar consciência, por exemplo, de que o gato está vivo. Se foi sua consciência que produziu o co­lapso, significa que antes de destapar, o gato estava em um estado não definido de vida-morte, vale dizer, onde estas propriedades não são POP, nem PONP. Só no momen­to de destapar, que é quando o físico toma consciência do resultado do experimento, o gato "se decide" por vida ou morte. Os nossos leitores psi que têm gato seguramente irão achar isto inaceitável e asseguram que o gato, an­tes que o físico tome consciência, se sentia com vida, ou…

O observador poderia ter postergado sua observação até o dia seguinte, com o que se teria prolongado em 24 horas o estado de indefinição do pobre gato. Que seja a consciência do observador que produz o colap­so ou, ao menos, que determine o instante em que este se produz, é também um "gato difícil de engolir". Novamen­te ressalto em afirmar, que o gato já estava morto ou continuava vivo antes que o físico destapasse a jaula tomando a consciência de seu estado, pois, a única coisa que o físico faz, é tomar conhecimento de um estado preexistente, o que impli­ca afirmar que a mecânica quântica é correta, mas não contém toda a informação sobre o sistema físico. Isto é, que existem na realidade certas características rele­vantes que permanecem ocultas, ou, em outras palavras, que a mecânica quântica não é completa. Veremos mais adiante que esta solução às dificuldades propostas pela medição apresenta novos inconvenientes que a tornam não tão atrativa.

A conclusão que podemos tirar até agora é que o problema da medição na mecânica quântica dis­ta muito de ser resolvido. A ausência de uma interpretação clara da teoria e a urgente necessidade de encon­trá-la se manifesta aqui dramaticamente. No que resta deste artigo, apresento um argumento do qual surgem várias alternativas de interpretação que serão discutidas mais adiante.

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