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A cura para a Psicanálise

Procuramos com a realização desse trabalho, deixar claro que o conceito de “cura” não é um conceito psicanalítico e, que esta só poderá ser alcansada como um efeito secundário de uma psicanálise.

" Apesar de tudo, a cura sempre tem um caráter de benefício por acréscimo — como afirmei, para escândalo de alguns — mas o mecanismo (da análise) não é orientado para a cura como finalidade. Não digo nada do que Freud já não tenha formulado poderosamente: toda inflexão em direção à cura como finalidade — fazendo da análise um meio puro e simples para um fim preciso — dá algo que estaria ligado ao meio mais curto e que só pode falsear a análise " >>> Jacques Lacan.

Penso tratar-se de um ponto indiscutível, que um processo de análise possa redundar em efeitos curativos, o que significa que a análise pode produzir efeitos de diminuição ou até o total desaparecimento do "sofrimento" do paciente. É importante notar que coloquei o "sofrimento" e a "cura" entre aspas. Quando falamos em sofrimento, estamos nos referindo a uma plêiade de sintomas trazidos pelo paciente, os quais nos são referidos como angústia, ou ainda como aqueles que são denominados em psicanálise, os equivalentes somáticos da angústia.

Quanto as aspas referentes ao termo cura, elas se devem ao fato de que não devemos incorrer no modelo médico da cura, onde cura pressupõe doença e, esta também deve ser relativizada em se tratando de psicanálise. Não estamos com isso querendo dizer que a doença psíquica não existe, apenas que é estruturada em outras bases ou em outro código.

Nunca é demais lembrar que em psicanálise, não se faz "diagnóstico" (também entre aspas) através da sintomatologia, mas sim pelas linhas de conflito envolvidas. Enfim a cura não é definitivamente um conceito psicanalítico.

Quando alguém decide procurar um psicanalista, entendemos que o pré-conceito de cura, entendido como a supressão dos sintomas, está no campo central dessa busca. Segundo Lacan, "a cura é uma demanda que faz parte da voz do sofredor, de alguém que sofre pelo seu próprio corpo ou por seu pensamento ".

Devemos ter claro que a demanda de cura, já encontra-se prenhe de transferência. Assim sendo, entendemos que esse é o primeiro passo em direção ao que se convencionou denominar, na terminologia lacaniana, do analista como o sujeito suposto saber. Ainda da mesma terminologia, encontramos o conceito de "retificação subjetiva", o que significaria uma limpeza da demanda, ou em outros termos, seria poder instaurar uma modificação do paciente com relação à sua demanda.

Dos trabalhos de Ida Macalpine sobre a transferência, Lacan retirou o termo retificação e acrescentou o subjetiva. Já Freud, embora não tenha utilizado a mesma expressão, nem por isso deixou de intuir o seu significado. Assim, a transferência supõe que comecemos pouco a pouco a interferir, a nos introduzir no sofrimento do outro. Dessa maneira, a demanda de cura feita no início da análise, acaba sendo substituída progressivamente por manifestações transferenciais. Retomando a colocação de Freud: "Essa relação, que por brevidade se chama transferência, logo toma o lugar, no paciente, do desejo de cura".

Uma aparente contradição: podemos e devemos realizar a seguinte reflexão: "Como é que alguém que quer se curar, acaba se empenhando numa relação analítica, a qual é portadora de uma nova "doença"? Deve ficar claro que aqui, estamos nos referindo à neurose de transferência. Então, se de um lado, o paciente apresenta uma grande colaboração em relação à análise, colaboração que entendemos como positiva, de outro lado, também não quer se separar dos seus sintomas, para poder continuar refugiando-se na doença .

Trazemos agora, duas colocações de Freud, as quais corroboram esse estado de coisas:

= temos constatado que os sintomas mórbidos são uma parte da atividade amorosa do indivíduo, ou mesmo a sua vida amorosa inteira.

= em um dos manuscritos encaminhados a Fliess, no qual trata das psicoses : "Esses doentes amam o seu delírio, como amam a sí mesmos ".

Dessas colocações podemos inferir que quando alguém ama o seu sofrimento, quando não deseja curar-se, é incurável. Nesse horizonte, a única chance alternativa que temos, é a possibilidade que a terapêutica atue de forma indireta; o que significa então, a criação de uma nova neurose, a neurose de transferência, a qual está destinada a responder, numa primeira instância, ao desejo de doença do analisando, para que aí sim, possamos chegar num segundo momento, a libertá-lo desse desejo.

A concepção psicanalítica dos sintomas, é uma concepção positiva, no sentido de que eles exprimem um movimento positivo do Eu, para livrar-se de um sofrimento intolerável.

Ainda em relação ao processo de análise, Freud fala de uma ampliação do Eu e define a "cura", como a produção de um ser psíquico novo. Mesmo assim concebida, a "cura" costitui-se num ideal nocivo à análise. Como uma fundamentação para essa nocividade, deve ficar claro que, se o analista propõe um projeto curativo para a análise, ou em outras palavras, se conscientemente ele se diz: " É preciso que consigamos isso", ele se arrisca a atribuir limites artificiais para o trabalho analítico, comprometendo o nível de sua escuta, além de também de seguir a tendência mais perigosa da contra-transferência, ou seja, aquela que mais ameaça o analista: "o orgulho terapêutico ". Essa pretensão aponta para o narcisismo do analista.

Com o intúito de lembrar ao analista a necessária humildade para cumprir a sua função, sabemos que Freud e Lacan, cada um à sua maneira, elaboraram fórmulas muito interessantes :

Freud retomou o aforismo do médico anatomista que foi Ambroise Paré. Para enfatizar os limites de sua arte e, pensando em seu paciente, Paré enunciou: "Eu o trato, Deus o cura ". Trazendo para a nossa realidade analítica, teríamos: "Eu o escuto, presto-me ao jogo das forças pulsionais, a psicanálise o cura ". Lacan, por sua vez, completou dizendo: " eu o escuto e a psicanálise o cura…por acréscimo ".

Trazemos mais uma vez Freud em nosso auxílio, em uma outra colocação extremamente importante:

"A eliminação dos sintomas de sofrimento não é procurada como objetivo particular, mas, sob a condição de uma conduta rigorosa de análise, ela ocorre, como um ‘ benefício anexo ' ". Assim, se o benefício é anexo, deve haver um efeito principal. Como conclusão, devemos entender que esse efeito principal, é a reorganização do Eu em benefício do Isso.

Concluindo, entendemos que Freud tenha se utlizado de conceitos da área médica, uma vez que ele era também um deles. Contudo, quando o ouvimos descrever os processos envolvidos, mérito devemos atribuir a ele, uma vez que em suas definições, para elaborar o construto teórico da psicanálise, consegue prescindir plenamente da área médica.

Bibliografia Complementar:

= " Em defesa de uma certa anormalidade "

Joyce MacDougal

= " Um psicanalista no divã "

Juan David Nasio

= " Análise terminável e interminável "

Sigmund Freud === Obras Completas

Editorial Amorrortu.

= " Atitude sem desejo nem memória na técnica analítica "

Wilfred Bion

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