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O necessário resgate da Filosofia para a justa compreensão da Sociedade Contemporânea

"Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil; se não se deixar guiar pela submissão às idéias dominantes e aos poderes estabelecidos for útil; se buscar compreender a significação do mundo, da cultura, da história for útil; se conhecer o sentido das criações humanas nas artes, nas ciências e na política for útil; se dar a cada um de nós e à nossa sociedade os meios para serem conscientes de si e de suas ações numa prática que deseja a liberdade e a felicidade para todos for útil, então podemos dizer que a Filosofia é o mais útil de todos os saberes de que os seres humanos são capazes".

Marilena Chauí

 

Resumo

Procuramos neste artigo ilustrar para que serve a Filosofia, ou melhor dizendo, o ato de filosofar a partir das reflexões sobre a violência atual. Identifica-se em nossos dias um clima vivencial subjetivo, e também objetivo, que nos promove, a todos, consciente ou inconscientemente, um estado de espírito em tudo semelhante ao dos sobreviventes do Pós-Guerra de 1945. É neste momento que lá nascia oficialmente o pensamento filosófico existencialista francês. De fato, ele é fruto do incalculável sofrimento vivido nos seis anos desta Guerra, em especial, pela Resistência Francesa durante a Ocupação Nazista de sua terra, e, ainda, pelo período de privação, após a Vitória dos Aliados, no qual a Europa mergulhou a fim de se recuperar desta trágica experiência mutiladora. Entretanto, ao que tudo indica a "Guerra Mundial" não acaba nunca. Perguntamos:- Seria exigência da nossa condição humana, viver em permanente estado de prontidão para fabricarmos alguma guerra? Seria a busca da realização existencial autêntica de um Homo bellicus que, porventura, somos?

Para tanto, lembramos alguns acontecimentos internacionais, dos anos 50 até a atualidade, que reforçariam a resposta afirmativa a estas perguntas. Em nosso país, pensamos existir estímulos destrutivos de tal ordem, que nos levariam às mesmas reações expressadas nas teses do existencialismo francês. Nem tudo aqui é carnaval e samba, somos vítimas, e agentes, de uma violência urbana e rural de fazer sombra a muita guerra militar declarada hoje no planeta. Pois bem, filosofar, neste caso, é situar-nos historicamente, em um processo de conscientização no momento presente, para aumentarmos nossas chances de bem-viver em um futuro próximo. É, sobretudo, um instrumento para melhor aprendermos com a experiência vivida por nós mesmos e por notáveis pensadores que nos precederam.

1. Em primeiro lugar: para que serve a Filosofia?

Ao contrário da filosofia, nas demais disciplinas temos forçosamente algo a assimilar: em matemática – axiomas, postulados, uma seqüência lógica de teoremas; em física, em ciências naturais, em história, etc. – um conjunto de fatos que procuramos explicar de modo racional. Em filosofia não é assim, apesar de também termos que reter algumas das idéias dos grandes filó­sofos. Entretanto, ninguém é obrigado a pertencer ou aprovar alguma dessas idéias. Aliás, nenhum sistema filosófico obteve, até hoje, concordância unânime dos estudiosos. Tomás de Aquino e Karl Marx são filósofos relevantes, entretanto, seus sistemas são antagônicos. Esperar-se da filosofia um conjunto de conhecimentos plenamente elaborados, bastando adquiri-Io, será uma decepção.

A filosofia não nos dá um saber, nem propõe uma arte de viver ou uma determinada moral. Melhor dizendo, os sistemas nela encontrados são tão variados quanto o número de seus autores. É impossível estabelecer ao homem um conjunto único de regras de conduta. Em filosofia não existe a "verda­de" da mesma ordem de um teorema ou de uma lei física. Os sistemas sucedem-se no decorrer da história. Quando um filósofo refuta aquele que o precedeu seguramente também será refutado. Nenhuma filosofia pôs termo à filosofia, ainda que seja este o desejo oculto de todo novo sistema filosófico. O filósofo é como um artista, cada qual possui seu estilo de ver-o-mundo (Weltanschauung). Um sistema filosófico não é nem mais nem menos do que seria um concerto para piano e orquestra.

As discussões dos filósofos não devem conduzir a um ceticismo estéril, mas, ao convite em nos debruçarmos sobre os problemas levantados, e pensarmos por conta própria. As teorias filosóficas valem, em princípio, menos pelo seu conteúdo, e mais por oferecerem material de reflexão. A filosofia não é a sofia (sabedoria) mesma, senão a busca por essa sofia. Em outras palavras, a essência da filosofia é a procura do saber e não a sua posse. Infelizmente, vez por outra, num gesto de traição, este saber se degenera em dogmatismo, sendo colocado em fórmulas, de modo completo e definitivo. Isso não é o filosofar. Filosofar é estar a caminho de; as perguntas são mais importantes que as respostas e cada resposta transformar-se-á em nova pergunta. A humildade filosófica consiste em dizer que a verdade não pertence mais a mim que a ti, mas que é uma possibilidade diante de todos nós. A consciência filosófica não possui um saber absoluto, nem está presa a um ceticismo irremediável. Ela é inquieta por natureza, e percorrendo o caminho do meio, deverá dirigir-se sempre à procura de uma verdade para a qual ela se sente talhada.

A re-flexão é uma espécie de movimento de volta a si mesmo executado pelo espírito que coloca em pauta os conhecimentos que possui. A expe­riência de vida nos traz uma multidão de impressões, enquanto que a prática de uma especialidade, como o conhecimento científico, nos traz no­ções mais completas e precisas. Todavia, por mais rica que seja a nossa experiência de vida, e por mais completos que sejam nossos conhe­cimentos científicos ou técnicos, nada disso atua como filosofia. Ser filó­sofo é refletir sobre este saber, interrogar-se sobre ele. Definir a filosofia como re-flexão é vê-la como um metaconhecimento, ou seja, um saber do saber.

O universo intelectual em que vivemos hoje é infinitamente mais complexo que o dos contemporâneos de Sócrates. O espírito da re­flexão filosófica não mudou, mas a sua matéria enriqueceu-se sobremaneira. O filósofo não pode ignorar o de­senvolvimento das ciências e das técnicas, que constitui atualmente um material precioso para suas reflexões. Alguns se especializam, por exemplo, em filosofia da mente, da biologia, da física, da química, do direito, da economia, da medicina veterinária, do lazer, das artes, e por aí vai. Refletir filosoficamente sobre a ciência é interrogar-se sobre seus resultados, seus métodos, seus fins.

Por exemplo: Qual é a natureza do conhecimento científico? Ele atinge o real em profundidade ou apenas em fórmulas práticas e símbolos operacionais? Todavia, a reflexão filosófica vai muito além e desnuda questões que a ciência ignora. A ciência se ocupa em explicar os fenômenos naturais ligando-os por leis inteligí­veis, por fórmulas matemáticas. Assim se explica porque, numa dada experiência, ocorreu determinada coi­sa e não outra. Mas há outra questão, muito mais geral, da qual a ciência não trata.

A filosofia não é nem saber e nem poder. Estamos hoje subjugados ao poder da tecnologia, a tecnocracia. Um tema familiar nos dias atuais é o do técnico "apren­diz de feiticeiro". O terrível perigo do desenvolvimento das armas nucleares, assim como os perigos da robotização pela mecanização de nossa existência, evidencia que a técnica não substitui a sabedoria, do mesmo modo que a ciência não substitui a filosofia. A tecnologia ensina-nos a nos servirmos das coisas. Mas saberemos para o quê nos faremos servir? A tecnologia só fornece meios de ação ao homem. Ela emudece quanto aos fins que devem guiar nossa conduta. Hoje, mais que antes, o esplendor dos poderes huma­nos, sobretudo os de destruição, radiografa tragicamente a ambivalência dos nossos de­sejos. Somente a filosofia traz à tona os valores e seu significado.

A partir deste prelúdio, convidamos nosso leitor a despertar para o exercício de sua capacidade em atingir o metaconhecimento, e ponderar, junto a nós, sobre os registros factuais que tristemente garimpamos nesta matéria.


II. O Existencialismo francês e a geração do pós-guerra

Estamos convencidos de que as teses do existencialismo francês, capitaneadas por Sartre, traduzem as expectativas do homem moderno neste início de século. Mesmo em nosso país, onde não há focos declarados de guerra, sobrevivemos por mero acaso. Há uma violência urbana e rural civil, policial, e até militar, sem precedentes na nossa história. Um exemplo: a quantidade de assassinatos praticados entre São Paulo e Rio de Janeiro, por dia, chega a fazer sombra em regiões do planeta onde há guerra militar oficial. Nosso estado de espírito não é mais saudável ou otimista do que daqueles europeus que acabavam de sair da II Guerra Mundial, e que tiveram seus países ocupados pelo Nazifascismo.

Foi neste clima que nasceu o Existencialismo Francês, e, por isso mesmo, aquilo que seus pensadores escreveram espelha nossos corações e mentes dos dias de hoje sem distorções, tão comuns nos espelhos. Para argumentar nossa posição, basta-nos lembrar algumas linhas registradas pelo filósofo e escritor, Sartre, e pelo escritor existencialista, Camus. É um existencialismo que dispensa a hipótese do divino, cuidando de um Homem abandonado no mundo, órfão dos deuses e órfão de razão para viver. Seria de bom marketing propor um novo nome-ícone, como Neo-Existencialismo ou Pós-Existencialismo. Entretanto, pensamos que, também, seria presunção de nossa parte querer alterar ou acrescentar algo ao que já foi dito por esses mestres do Ocidente contemporâneo.

Uma vista panorâmica da problemática européia vivida durante a primeira metade do século passado, revela-nos uma seqüência de desordem, violência e extinção. De início, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), logo depois, o caos econômico-financeiro dos anos 29-30; os expurgos dos processos de Moscou em 1936; a Guerra Civil Espanhola (1936-1939); a defecção da democracia liberal-burguesa diante de Hitler em Munique (1938); os massacres e destruição de populações inteiras na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), culminando nas suas experiências históricas com os nocautes cientificamente controlados de Hiroshima e Nagasaki.

Quem nasceu nos vinte anos seguintes a esse grande cogumelo final, portanto, até 1965, é conhecido em língua inglesa como baby boomer, período em que houve um significativo aumento da taxa de natalidade, daí a expressão boom, tanto nos EUA, como na Europa. Falando em nome de toda a geração do pós-guerra no planeta, crescemos sob intenso padecimento psíquico, quase que ininterrupto, por exemplo, sob o impacto da tensão da "Guerra Fria", considerada hoje pelos cientistas políticos como a Terceira Guerra Mundial, entre os dois grandes blocos de poder, EUA e URSS – como, no episódio da Revolução Cubana, quando estivemos prestes a um suicídio nuclear. Este clima criado sob as relações leste-oeste teve um ícone monstruoso, o muro de Berlim, que se manteve em pé de 1961 até 1989, quando de sua queda. Nesta altura um precoce baby boomer já estava com 45 anos de idade.

Ao mesmo tempo, presenciamos os intermináveis focos de guerra declarada: na Coréia do Norte, a tragédia sem par do Vietnã, e vimos presenciando, a luta dos palestinos por um território, os choques sangrentos em Israel, o terrorismo internacional de organizações, como o narcoterrorismo das FARC colombianas, o IRA dos irlandeses, a ETA dos bascos, al Qaeda dos árabes, todos movidos pela vontade de poder e justiça unilateral, seja pela supremacia territorial, política, econômica, ou religiosa. Esta última alimentando grupos radicais a promoverem confrontos internos e externos. O terrorista comum que a sociedade mundial sempre execrou, é transformado hoje em herói de guerra. Não discutimos suas razões, mas condenamos peremptoriamente seus meios. Estes atos de destruição vão atingir os USA em sua "própria casa", pela segunda vez (a primeira, em Pearl Harbor, 1941), no onze de setembro em Nova Iorque. Como era de se esperar, vieram, as retaliações perpetradas pelos norte-americanos, com objetivos mal explicados, como a pulverização bombástica do Afeganistão, a invasão e tomada do poder no Iraque… e tanto mais.

Claro está que somente citamos, com maior veemência, os fatos recentes mais marcantes, que rasgaram feridas enormes entre grandes potências, como países da Europa Ocidental, a ex-URSS, os USA, Israel, parte do mundo árabe. Seria absolutamente impossível inventariarem-se todas as guerras, guerrilhas, atentados, etc., ocorridos desde 1945. Talvez, nem mesmo as grandes agências internacionais de Inteligência conseguiriam fazê-lo. Também é fácil notar que somente os vitoriosos nas guerras é que ganham os noticiários, os livros, os filmes, as teses acadêmicas, etc., que são lembrados enfim. Neste pequeno artigo não temos espaço para argumentar e tomar algum partido, e nem queremos isso. Nossa posição é, numa epoché fenomenológica, não tendenciosa, vale dizer, avessa às ideologias. Além disso, concentramo-nos no homem e não em uma nação.

Quanto à questão da violência, é bom lembrar que ela existe em múltiplos níveis. Em se falando de guerras e guerrilhas, estamos no nível tanático, propriamente dito, mas, e a violência psicológica, moral, contra minorias regionais, contra as mulheres, crianças e idosos? – a violência econômica, promovendo uma distribuição de renda perversa? – a violência dos assédios em geral? – a violência de governos ditatoriais que massacram seus opositores? – e os genocídios étnicos? Acrescentemos aqui, a microviolência do cotidiano nas grandes metrópoles, que nos consome insidiosamente, e sem que nos apercebamos disto. Nossa alma é corroída pelo estresse crônico e cáustico, levando-nos a patologias física e mental. Isto tudo é matéria vasta para os cientistas sociais e políticos, e também para os paleontólogos e arqueólogos, pois a história da humanidade é profundamente marcada por uma violência banal e letal. Em todo caso, o existencialismo francês só vai ser inaugurado em 1945, e é a partir daí que fazemos algumas reflexões.

Assim, a Europa e o mundo em geral contemplaram:

(a) o aceleramento industrial cada vez mais rápido e interminável;

(b) uma profunda revolução científica seguida de uma tecnologia inimaginável;

(c) os problemas inerentes a uma urbanização desmedida, mal locada, com riscos ao planeta, levando a uma preocupante visão naturalista do homem;

(d) o florescimento de uma filosofia econômica, social e política que subordina o homem, como indivíduo, ao bem-estar do grupo, sociedade ou Estado.

O resultado do que foi assinalado é a problematização de todos os velhos valores e do próprio sentido da vida; o sentimento do homem de que estava enganado sobre si mesmo e sobre sua autêntica natureza. O homem ficou reduzido a uma engrenagem a mais de um mecanismo gigantesco; sua importância é a de uma pequeníssima parte de um todo. Assim, perde o homem o sentido de seu significado e de sua importância como indivíduo, bem como sua identidade.

A busca da base para a filosofia existencial consiste em "ver-o-mundo" do ponto de vista da existência humana. E se situar a experiência do homem no centro do quadro, opondo-se veementemente à tentativa de explorar o mundo dos objetos e das essências, prescindindo do homem. Sua estrutura de referência tem que ser o homem, tal e como ele existe, e na sua dimensão interna: com seus temores, esperanças, desejos e angústias.

Partimos, pois, da realidade humana, o que não equivale a reduzir toda a filosofia à existência, mas somente a se propor todos os problemas a partir da existência humana. Por exemplo, as perguntas: O que é o homem? O que é o mundo? O que significa Deus? O que devo fazer? O que me é lícito esperar? Todas elas receberão uma resposta que depende da idéia que formamos da nossa existência. Podemos perguntar: E isto com que direito? Por que situar a existência humana no ponto de partida da filosofia e da vida? Por que não partimos do mundo, ou do divino, ou de qualquer outra coisa?

A resposta é concludente: Porque a existência humana é um fato primordial; mais ainda: é o fato por excelência, sem o qual todos os demais fatos sequer serão fatos. Não se trata de partir de uma hipótese mais ou menos verificável, mas de algo indubitável: a experiência inegável da existência que me constitui. Se eu não disponho desta experiência não poderei realizar nenhuma outra experiência nem poderei constatar nenhum outro fato. Por isso, posso dissipar as quimeras da imaginação ou o cálculo da lógica, dados como autênticas realidades, mas que são, somente, elucubrações da mente.

Entretanto, neste ponto surge uma dificuldade: que a existência é um fato inconteste, é certo, mas não o é a sua interpretação e nem a sua descrição, pois estas se prestam a polêmicas. E isto por uma razão muito clara: Como se pode descrever um tipo de existência, que transcenda à multiplicidade de existentes, e à diversidade de experiências que um deles realiza? Em outras palavras: como pode uma única estrutura (a existência) dar conta da infinitude de experiências existenciais dos homens?

Tão logo se abandona a simples constatação do "eu existo", para tentar estabelecer o que cada um entende por "existir", perde-se a certeza primordial. A conseqüência é que a filosofia existencial tem seu maior problema em seu próprio ponto de partida, e, portanto, há diversos tipos de filósofos existenciais. Se buscarmos neles uma exatidão homogênea, vamo-nos sentir fraudado. Um comentário de importância que podemos fazer a respeito disso é que as distintas visões do existencialismo acabam por ordenar-se em uma zona contínua e que a oposição destas diferenças reflete: (a) o vastíssimo campo das experiências humanas; (b) a capacidade vital da filosofia existencial de poder arcar e assimilar tais conflitos.

No momento em que o existencialismo se tornar petrificado, cristalizado, anquilosado em um dogma consistente, nesse mesmo instante a vida irá ficar à margem do mesmo, e o existencialismo terá se desviado do único foco de sua atenção: o homem em sua finitude. Em uma aproximação do pensamento existencial, é Sartre quem nos adverte que não devemos nos conformar aceitando uma idéia determinada sobre nós mesmos. Nós existimos: esse é o único fato com o qual se deve contar. Este é o tema primordial do existencialismo.

A idéia determinada que o homem possa ou deva ter de si mesmo, depende da interpretação que ele dá à sua existência. A natureza do homem não determina o que deve ser sua existência. Mas, ocorre exatamente o contrário: a sucessão de atos que forma a existência de cada homem define o que cada homem é, sem relação com uma essência eterna da humanidade, que para o existencialismo é flatus voces. O homem é quem faz a si mesmo. A mesma idéia expressada pelo poeta espanhol Antonio Machado, quando diz: "Caminhante, não há caminho; faz-se o caminho ao caminhar", e isto significa que cada homem tem de dar sentido a "seu ser-homem".

Podemos observar que ao existencialismo preocupa o humano, por isso é um humanismo, mas também é um individualismo, porque cada homem é quem faz a si mesmo. Até aqui está evidente: o que importa é o sentido dado à própria existência. Mas logo surge uma série de questões que merece atenção: Por que então o homem não se contenta somente em existir? Por que se preocupa em inventar uma essência, que não existe? Por que dar um sentido à palavra "humano"? Por que transcende sua existência na direção de uma essência?

Sartre responde que a condição humana é absurda, o homem empreende, sem razão alguma, a tarefa de fazer-se homem; o existente transcende sua existência sem justificação; não se deve a nada o impulso para a essência; a contingência humana é mera irracionalidade: O homem está aí sem razão alguma. A isto é o que Sartre chama de "facticidade": simplesmente, existo. Isto é um fato: que eu esteja aqui e agora, e que não há razão aparente para isso. Assim, conclui Sartre, que nunca estamos completamente satisfeitos conosco mesmos, porque não conseguimos calar este excesso de ser que nos invade.

Podemos encontrar duas vertentes básicas no existencialismo: primeira – como filosofia do absurdo, com seus conceitos de contingência, angústia, alienação, nada; culmina no niilismo; é a existência perdida. – segunda – como filosofia da liberdade, com seus conceitos de projeto, compromisso, criação de valores; culmina em um individualismo prometéico; é a existência reconquistada.


III. Filosofando sobre a condição humana

Os sistemas sociais e suas bases institucionais estão divorciados da experiência humana. Divorciados da natureza humana. A personalidade predominante em nossa época, o indivíduo "normal", ou "normótico", em nossa cultura, está fragmentada entre esforços fúteis para manter a fonte de sentido pessoal de vida. Pelo compromisso com a desumanização por meio de sistemas anacrônicos de valores e suas lutas, de um modo melancólico e perverso, pela manutenção da integridade do ser humano.

A maioria de nós converteu-se em caricaturas de humanidade e raramente as nossas vidas são vividas em plenitude com as nossas potencialidades. A própria discórdia íntima e pessoal do Homem o esmaga sob a incapacidade trágica de se relacionar com os outros em uma aura de amor e mútua comunicabilidade. É mais provável que os vínculos interpessoais sejam forjados no ódio, na obrigação, na culpa, no egoísmo e na exploração. As relações definham, bloqueando as suas possibilidades ainda mal iniciadas. Alienação e desafeto, pessoal e interpessoal, são um fato, um modo de vida. Vivemos entre estrangeiros e inimigos, até quando estamos sozinhos.

Em todos os níveis da sociedade, em todas as suas instituições e na maioria das dimensões humanas da experiência, estamos em uma longa transição de proporções críticas. O discurso ético, a regra moral e os sistemas de crenças que emprestaram seu apoio à ordem antiga e às organizações conceituais de outrora deixaram de ser viáveis. De um modo lento e sutil, tornamo-nos insensíveis e devemos compartilhar em massa a culpa como componentes integrais que somos da nossa engrenagem social desumanizante e da complicada estrutura institucional que serve de esteio a tal sistema fechado. Desumanizante, vale dizer, privar de caráter humano que implica a existência de certas qualidades, características e necessidades, intrinsecamente humanas que definem "humanidade" como o núcleo central de atributos ou potenciais nobilitantes da personalidade humana, núcleo esse que persiste e se manifesta nos aspectos cardeais do processo de humanização.

Em termos mais íntimos, a crise secular que atravessamos pode ser vista como uma crise de experiência pessoal. Nunca houve, e nem haverá somente um paradigma humano. Estamos em uma trajetória permanentemente evolucionária que não permite perceber-se com segurança a validade das nossas observações externas, ou sentir a integridade da experiência interior pessoal, a vivência. Entretanto, essa confusão em torno da realidade e significado da experiência não levou ao surgimento de novos significados nem a integrações derivadas da interação de "experiências compartilhadas", pelo contrário, cristalizou-se em uma espécie de intimidação da experiência, a necessidade de competir pela sua validade e significado.

Essa intimidação da experiência ocorre em todos os níveis de intercurso humano: entre pais e filhos, marido e mulher, patrão e empregado, professor e aluno, governante e governado, paciente e médico. Talvez, essas relações centradas nestes papéis, reflitam esse problema. Em vez de uma partilha e interação da minha experiência com a de outros, para que possamos nos entender e desenvolver mútuo respeito pelos nossos eus experienciais singulares, dando origem a um sentimento enriquecido de conscientização e realidade, o que fazemos é lutar em competição para lograr a validade da nossa experiência individual. São a minha experiência contra a tua, como duas equipes empenhadas em um duelo pelo escore mais elevado. E se a experiência do meu antagonista for divergente da minha e, portanto, ameaçadora para mim, aquele que a experimentou, tornar-se-á suspeito e terá de ser "tratado", isto é, avaliado, testado, ridicularizado, rejeitado, diagnosticado ou até drogado. Na medida em que a intimidação da experiência opera em círculos mais amplos, apoiados pela mídia, deparamo-nos com um engessamento da opinião pública.

Às crianças dizemos, freqüentemente, o que podem, ou não, experimentar, excedendo em muito o simples educar. Estabelece-se, assim, um padrão de relacionamento entre pais e filhos, por mais tempo que o desejado, baseado nessa fórmula de intimidação por heteronomia – o que vale é a vontade do outro. As crianças crescem, e se tornam adolescentes afastados de seus próprios processos internos, e de sua sensibilidade intuitiva para validar suas experiências. Deste modo, ou "enlouquecem" no ódio e na autodestruição – os transtornos mentais mais graves costumam aparecer na adolescência -, ou se revoltam em desafio contra tão flagrante violação desses aspectos mais íntimos do eu – surgindo, assim, os perigosos distúrbios de conduta daquelas personalidades transtornadas.

As experiências vitais da maioria dos Homens, aquelas que tecem a estrutura de suas personalidades e determinam o curso de suas vidas, são amplamente ignoradas na pesquisa mental e social. À medida que nos aproximamos da experiência interior do Homem, dos métodos necessários à compreensão dessa experiência, vai-se ingressando em um novo universo, de mitos e significados, de valores pessoais, de imagens mentais e simbolismos criativos. As questões decorrentes desse universo interno de experiência, quando traduzidas e reificadas pelo indivíduo, representam as amplitude e profundidade da personalidade humana. Surgem polaridades vitais: amor e ódio, vida e morte, alegria e pena, crime e castigo, estabilidade e mudança, criatividade e conformismo, responsabilidade e dependência, e tudo isso adota relações de tensão que devem ficar abertas à conscientização.

As concepções e teorias filosóficas limitadas do homem são aquelas que preferem vê-lo, ou como vítima predestinada por uma programação genética, construída ao longo de milênios, ou de uma complexa história de reforço de comportamento; ou somente como joguete em um duelo de forças psíquicas inconscientes e pressões sociais externas, na busca da satisfação de seus instintos e pulsões. O homem perde virtualmente o controle de sua própria direção vital, vítima de uma "psicopatologicização existencial", seguindo uma trajetória conhecida, que passa pela angústia, depressão, apatia, tédio, podendo chegar até ao suicídio, todos, sintomas existenciais.

Lembramos de trecho do livro, que virou filme, Forrest Gump, o contador de histórias, no qual, seu protagonista, sem saber como, nem por que, começa a correr… e correr, sem parar, pelas cidades. Que ele desconhecesse suas motivações internas seria esperado, já que era um ser-limitado-no-mundo, um enxerto de autismo em oligofrenia. Seu Mitsein (co-ser, ser-com-os-outros) era de extrema pobreza. A grande perspicácia do autor foi colocar um bando crescente de seres humanos que passaram a segui-lo naquela corrida sem freios e sem rumo. Certamente, pessoas com uma existência à deriva – e quando assim nos encontramos, nenhum vento é favorável. Mas, aquele rapaz que corria aparentemente com determinação, passa a preencher o vazio de cada um de seus fiéis (per)seguidores. E todos vão correndo… e correndo. Quando Forrest pára, por motivo nenhum, os prosélitos entram em crise de abstinência: "O que faço agora de minha vida?" O rebanho ficou sem o seu pastor.

A análise de postura existencial busca resgatar o Homem ao seu devido lugar. As prioridades são determinadas pelos autênticos problemas humanos que surgem à vista, nitidamente enfocados. O método fenomenológico-existencial é extremamente sensível e resistente à sedutora tentação de modelar o Homem de acordo com algum sistema teórico já montado, mas busca talhar uma teoria que desvele o Homem em sua plenitude e que esteja em mais íntima harmonia com a natureza humana. O primeiro caso equivale a querer enfiar roupas em uma mala pequena e já lotada, à semelhança do leito de Procusto. As roupas têm de ser empurradas, arrumadas e talvez antes da tarefa for concluída, tenhamos até de eliminar algum importante item, ou dois, para que a mala possa ser fechada com êxito. E Procusto serraria as pernas do candidato. Esta analogia parece apropriada para representar as nossas imagens tradicionais do Homem e as distorções que se convertem em características intrínsecas a fim de preservar os elementos cruciais e sacrossantos de uma liturgia teórica tradicional.

Com o Homem e seu projeto-de-mundo no centro das atenções, sem necessidade de negar ou distorcer as suas numerosas características e possibilidades, com o intuito de preservar uma estrutura teórica apriorística, o pensamento fenomenológico-existencial reteve grande dose de liberdade para concentrar-se nos problemas e interesses humanos significativos, que podem levar em consideração toda a gama de experiências internas do Homem.


IV. Sartre e Camus se tornam nossos intérpretes

Jean-Paul Sartre (1905-1980) nasceu em Paris. Foi prisioneiro dos alemães de 1940 a 1941. Participou da Resistência Francesa, os partisans, durante a ocupação nazista de seu país. Ao término da Guerra, em 1945, fundou a Revista Les Temps Modernes. Sua obra como escritor e filósofo é vasta e marcada pelo sofrimento da II Guerra Mundial. Já em 1943, em plena Guerra, escreve sua grande obra filosófica L'Être et le Néant (O Ser e o Nada). No pós-guerra imediato escreve L'Existentialisme est un humanisme (O Existencialismo é um humanismo) e Réfléxions sur la question juive (Reflexões sobre a questão judaica), ambos em 1946.

Albert Camus (1913-1960) nasceu na Argélia. Foi um literato justificadamente associado ao existencialismo, o que fica evidente nos temas por ele tratados, como em L'Étranger (O Estrangeiro), de 1942, em La Peste (A Peste), de 1947, e nos seus primeiros ensaios, sobretudo em Le Mythe de Sisyphe (O Mito de Sísifo), de 1942. Sua obra é fecunda e seu espírito, como o de Sartre, está obviamente contaminado pelo clima bélico.

Todos os livros de Sartre e Camus estão disponíveis para venda nos catálogos de suas editoras, pelo mundo afora, na data de hoje – 2005.

Coube à literatura, primeiro em numerosos países da Europa Ocidental, notadamente na França, depois nas Américas, difundir a um vasto público, os principais valores do existencialismo. Seus autores foram dotados do poder de universalizar suas experiências, reais ou indiretas, habilitando milhões de seres a viver imaginativamente essas experiências com eles. Antes da maioria dos homens de ciência, eles pressentiram as questões que iriam perturbar e ser defrontadas pelas pessoas desde meados do século XX até a atualidade.

Em comentário casual anotado em Carnets, de 1961, seu livro publicado cerca de um ano após a morte do autor, em um acidente de carro, (título em inglês: Notebooks, de 1965), Albert Camus, escreveu em 1945: "O único problema do nosso tempo: Poderá alguém transformar o mundo sem acreditar no poder da Razão?" Esta é, de fato, em nossa opinião, a interrogação que transtornou os espíritos mais reflexivos da Europa Ocidental. Mesmo antes de terem tomado conhecimento das dúvidas suscitadas pela física, ou das hipóteses mais ousadas da psicologia profunda, numerosos escritores da primeira década do século XX já expressavam suas reservas sobre a capacidade da Razão para fornecer uma explicação completa do mundo.

A admiração pelo racionalismo de Descartes dissipara-se entre os franceses. A fórmula de Hegel, ao declarar que o real é racional e o racional é real, não conseguiu satisfazer a todos, por ser demais restritiva. Ao mesmo tempo a velha noção de absurdo insinuou-se nos mais esclarecidos espíritos da Europa Ocidental. Também foi o reconhecimento de uma desarmonia fundamental entre o homem e o mundo. O existencialismo acabaria por oferecer várias interpretações à palavra absurdo, mas a convicção de que ele nos prevalece tinha-se espalhado no Ocidente.

Antes dos pensadores existencialistas elaborarem sua filosofia para alcançar um maior número de indivíduos pensantes, tornara-se evidente, enquanto a Europa tentava recuperar-se do choque da I Guerra Mundial, que o humanismo estava necessitado de renovação. O mundo Ocidental estava angustiado pela culpa a respeito das catástrofes que não conseguira evitar. Mesmo os norte-americanos, que se haviam acostumado à idéia, em virtude da sua privilegiada localização geográfica e do seu orgulho como novo Éden de estar imunes às tragédias, começaram por descobri-las, depois a dar-lhes guarida, após a Grande Depressão e o rescaldo da II Guerra Mundial. 

Se a ficção dos anos entre 1930-1970 pode ser tomada como espelho, nunca o desamor entre os dois sexos, e a conseqüente solidão, foi mais doloroso naquele tempo, e hoje. Certo número de pensadores, principalmente na Alemanha e na França, de 1930 em diante, pressentiu que a sua geração tinha de reconstruir e reexaminar todos os pressupostos filosóficos que lhes tinham sido apresentados. A literatura deles não era a única que preponderava na França: Colette, Giraudoux, Gide, Virgínia Woolf, E.M. Forster e, depois, Lawrence Durrell, na Inglaterra, não se sentiram impelidos a formular as questões prementes que Malraux, em suas primeiras obras um precursor do existencialismo, Céline e Sartre preferiam abordar. Contudo, era uma tradição consagrada pelo tempo, entre os franceses, aliar a literatura à filosofia.

O sistema fenomenológico de Edmund Husserl impressionou Sartre profundamente, pouco antes de seus 30 anos de idade. Sartre, ainda desconhecido, sentiu-se perturbado ao compreender que alguém já havia pensado com vigor o que ele levava confusamente em seu íntimo. Husserl advogava um retorno às "coisas-mesmas" e ao objeto. O impacto da fenomenologia sobre Sartre e seus amigos, que desenvolviam suas próprias versões do existencialismo, foi enorme. Correspondia ao desejo deles de repudiar generalizações sobre um homem teórico e universal, e de apreender a pessoa em sua singularidade e em sua circunstância (Ortega y Gasset).

O homem existe em um tempo definido e em um lugar específico. Para eles, a contemplação de essências era coisa do passado; queriam viver no aqui-e-agora, hic et nunc. E o propósito deles consistia em atuar sobre o mundo e transformá-lo. Para Sartre, a verdadeira idéia é uma ação efetiva. Os existencialistas franceses não se aprofundaram em metafísica nem em complexidade abstrata, como o fizeram os alemães. Sua mentalidade era mais ética, com todos os riscos e vantagens que tal atitude acarreta. O aliado mais eficaz dessa axiologia foi encontrado na literatura. O propósito de Sartre, tal como ele mesmo o definiu, foi o de entender o abstrato concretamente.

Sartre não se entregou à solitária contemplação do mundo ou ao anseio por um mundo de essências sonhado pelos platônicos. Ele vê o homem lançado nesta existência de uma forma absurda e cega. Como pária que é, tem de assumir o seu destino e dar-lhe um significado. A literatura é um meio de atuar mais eficazmente sobre as pessoas através da exploração imaginativa de idéias que, de outro modo, permaneceriam inanimadas. Mediante a dramatização de conflitos, leitores e espectadores sentem-se envolvidos. Até mesmo a literatura para o Sartre mais tardio, que intitulou Les mots (As palavras), de 1964, a história de sua juventude e vocação, parecia um meio excessivamente limitado de ação e talvez uma evasão ante os males sociais que um humanista, como um santo religioso, deveria ajudar a curar. Na boca do médico de A peste, Camus diz ser agnóstico e santo laico, sem esperança de salvação pessoal e sem qualquer fé.

Em tudo implícita e impregnando o resto, temos a aceitação do ateísmo como um fato por Sartre e Camus. A negação de Deus é formulada com mais elegância por Camus, mas nem por isso é menos irrestrita na prosa de O mito de Sísifo ou em A peste, que o próprio Camus considerou o mais anticristão de seus livros. A mesma negação está onipresente nas obras de Sartre. Repreendeu os cristãos por admitirem Deus – isto é, por temerem ser o que são: homens. E dizia que quanto a ele, não precisava de Deus e achava que Deus não existe; que o homem era suficiente para si mesmo. Naturalmente, dado que uma negativa não pode ser provada, nenhum dos existencialistas ateus tentou demonstrar a inexistência de Deus. Derivando as conseqüências lógicas do famoso brado de Nietzsche de que "Deus está morto", eles partiram daí e afirmaram que tudo acontece como se não existisse Deus e, certamente, nenhuma Providência.

No âmago do humanismo existencial está a afirmação da liberdade do homem. O homem não pediu para ser livre. Ele nasceu livre. O postulado, naturalmente, não pode ser provado e nunca foi. A tarefa do homem é assumir todo o ônus dessa liberdade. Mas só assim pode ele ser autenticamente livre e, através dessa escolha deliberada, trabalhar para um futuro mais brilhante. Tal como para Kierkegaard, o salto para essa escolha significa que deixamos de pensar e compreender retrospectivamente (através de causas, fontes, sondagem das influências sofridas, hereditariedade), enquanto vivemos para o futuro. Sartre escreveu extensas e rigorosas análises de Baudelaire e Flaubert como modelos que não lograram viver existencialmente, nem mesmo autenticamente. Conformaram-se às regras e convenções, em parte para gozar o perverso prazer de violá-las, o que é outra forma de afirmar a validade ou prestígio das mesmas. Fizeram de si mesmos os objetos que eram os olhos dos outros. Preservaram os próprios valores burgueses contra os quais esses típicos rebentos de famílias burguesas afirmavam rebelar-se.

A liberdade em Sartre é árdua. Exige muito dos indivíduos: para começar o repúdio de hereditariedade e, em certa medida, ambiente. Em um escrito importante, Situations II (O que é literatura?), de 1948, Sartre se expressa com grande paixão declarando que a liberdade para escrever pressupõe a liberdade do cidadão; que ninguém escreve para escravos; que a novelística está vinculada em solidariedade ao único regime em que a prosa conserva um significado: a Democracia. Para Sartre, escrever é outra maneira de querer liberdade. Ele afirma que não existe uma liberdade dada. O homem deve superar paixões, raça, classe, nação e levar outros homens com ele. O humanista existencial não se contentará em ser solitário e em desfrutar egoisticamente a liberdade escolhida. A liberdade nada mais é do que uma concha vazia, a menos que nela se liberte um conteúdo; e o conteúdo é resumido na palavra responsabilidade.

Camus, depois de seu primeiro romance, O estrangeiro, a história de um homem alienado e solitário que não reconhecia a existência de vínculos com seus semelhantes e não tinha nenhum com o passado, mostrou em A peste,

que cada um dos personagens assediados na cidade empestada é solidário com os outros. Só podemos salvar-nos salvando outros. Engajamento é o lema para esses humanistas. Sartre proclama que cada um de nossos atos tem como prêmio em jogo, o significado do mundo e o lugar do homem no universo; que através de cada um deles, queiramos ou não, estabelece-se uma escala de valores que é universal; e que seria inevitável experimentar temor e angústia em face dessa enorme responsabilidade. Para eles, o homem é onerado, ou honrado, com uma responsabilidade universal; o fato de ser responsável é a única coisa que ele não pode evitar. Os atos desses humanistas existenciais podem servir de modelos para outros homens; os princípios que os inspiram podem ser arvorados em sentenças universais.

Sartre nunca escreveu o tratado de ética que prometera. Seus amigos interpretaram, porém, numerosos aspectos de seu pensamento ético em vários livros sobre as posições éticas do humanismo existencial. Além disso, muitos comentadores franceses, ingleses, alemães, italianos e japoneses atacaram esta questão: Como pode esse humanismo que proclama uma liberdade ilimitada do homem traduzir-se em preceitos para o comportamento moral e social? Obviamente, Sartre, embora fosse generoso em seus conselhos aos jovens que o procuravam como se ele fosse um confessor ou um conselheiro, não era tolo para formular preceitos sob medida como o faria um sacerdote apoiado nas regras de um catecismo e em uma autoridade superior que poupasse a angústia da tomada de decisões a um perplexo adolescente. Como quase todo o moralista francês, antes dele, Sartre sabia que as obras de imaginação, especialmente o teatro e a novelística, são um veículo muito mais poderoso de ensinamentos morais e um estímulo mais eficaz à reflexão ética. O homem de letras que há nele sobreviverá talvez ao filósofo; seus contos e peças afetaram um número incontavelmente superior de pessoas e agiram sobre a sensibilidade e a vida interior delas de um modo mais duradouro do que seus volumosos ensaios filosóficos.

As principais características distintivas dessas obras morais e literárias poderiam ser enumeradas da seguinte maneira:

Primeiro, o homem deve aceitar a angústia como um dos dados de sua condição; por definição, ele não quer ser o que é e luta por ser o que não é. O homem é sempre ambíguo, contraditório.

Segundo, o repúdio do determinismo é fundamental para o humanismo de Sartre e dos que aclamaram o existencialismo entre 1940 e 1960.

Em contraste com a década de 1960-1970 nas Américas e na Europa, aqueles anos de humilhação, fome e derrota, depois (de 1948 em diante) da reconstrução, foram uma era de esperança. A partir de 1960, surge a tendência para o estruturalismo: a estrutura da nossa linguagem, da nossa constituição mental, aprisionando-nos e impedindo as rápidas mutações que poderiam ocorrer depois que a estrutura foi constituída, aos 20 ou 25 anos de idade. Nega a nossa independência dos nossos antecedentes e do nosso passado. Sartre declarou que rejeitava o estruturalismo na medida em que ele estava atrás de si, dizendo que nada tinha atrás de si, em 1965, na Révue d'Esthétique. Sartre chegou a ponto de repudiar a ficção naturalista que assentava na crença do determinismo da hereditariedade, e mesmo a ficção de numerosos realistas ingleses e americanos, que defendiam a forte influência do meio sobre nós.

Quando, em 1945, foram publicados os dois primeiros volumes [I. L'age de raison (A idade da razão); II. Le sursis (Sursis)] de seu romance Les chemins de la liberté (Os caminhos da liberdade), Sartre declarou que cada um de seus personagens, depois de ter feito qualquer coisa, podia ainda realizar qualquer outra coisa; que nunca calculou se um ato está de acordo com atos anteriores; que tomava uma situação e uma liberdade vinculada à situação; que, com isso, ganhava a vantagem da imprevisibilidade. Criticando os romances de Zola por situar seus escritos no passado, enquanto seus personagens têm futuro. A obsessão com o passado, que impregnou a ficção de Proust, Mauriac e muitos outros romancistas, depois da I Guerra Mundial, foi assim rejeitada por Sartre.

O terceiro ponto é que nos romances e peças de Sartre, Camus e seus amigos, embora tudo aponte para a ação e as mudanças no futuro, o presente não é sistematicamente sacrificado ao que possa surgir um dia. Em alguns casos extremos, esse ponto de vista acarretou a pregação da submissão, em vez da revolta advogada por Camus, e considerou o homem como uma ferramenta, não como um fim em si mesmo. Numerosos manifestos de Sartre defenderam que se escreva para a própria época, pensando para o presente e repudiando o tradicional, um apelo à posteridade de Stendhal, Gide e outros.

A posição ética de Sartre assenta no dever do homem de criar seus próprios valores, transcender-se para além da má-fé e esforçar-se por maior autenticidade. A segurança é apenas um ilusório abrigo para o indivíduo covarde, que fica aterrorizado quando, algum dia, sucumbe ao impacto dos acontecimentos. A moralidade só pode ser uma criação constantemente renovada. Diz Sartre que só está ao lado dos que querem mudar a condição social do homem e a concepção que têm de si mesmo. Daí a firmeza com que ele e Camus erigiram a sua ética:

(a) na fraternidade, retratada em Le mur (O muro), de 1939, e no terceiro volume do romance Les chemins de la liberté, La mort dans l'âme (Com a morte na alma), de 1949; e

(b) na solidariedade, o lema de A peste. Esse duplo ideal exigia que o humanista existencial não fosse um refinado esteta perseguindo seus sonhos, distanciado da multidão delirante, mas um homem engajado que quer a liberdade para os outros homens, notadamente os dos outros e menos favorecidos continentes, tanto quanto para ele próprio.

Um dos mais esclarecedores textos sobre os escritos teóricos de Sartre nas áreas da psicologia e da ética deve-se a dois médicos, R.D. Laing e D.G. Cooper: Reason and violence: A decade of Sartre's philosophy (Razão e Violência: Uma década da filosofia de Sartre), de 1946. A acusação de pessimismo inicialmente lançada contra ele, tornou-se ridícula quando uma nova geração cresceu mais niilista e amargamente destrutiva, mais desesperançada em sua busca de significado e propósito.

No conto La chambre (O Quarto, pp. 35-67), do livro O Muro, Sartre mostra com aguda precisão a existência de um doente mental. Pierre, o jovem esposo de Eve, não sai mais do seu quarto, tem alucinações, faz discursos desagregados. Sente um muro entre ele e a esposa (que às vezes chama de Agathe): "Vejo-a, falo-lhe, mas você continua do outro lado. O que é que nos impede de nos amarmos? Estátuas ameaçam-no, "à noite, mãos de homens, duras e secas, lhe tocavam, beliscavam-lhe todo o corpo; mãos de mulher, de unhas muito longas, faziam-lhe carícias abjetas". (…) "Eu me pergunto o que eles desejam. Esse sujeito (seu sogro, que acaba de sair) já esteve aqui. Para que me enviaram ele? Se desejam saber o que eu faço, basta que leiam na tela, não tem sequer necessidade de sair de casa. Eles fazem tolices. Eles têm o poder, mas só fazem tolices. Eu nunca as faço, é meu trunfo. Hoffka pafka suffka. Quer mais ainda?".

Sr. Darbédat, o sogro, tem horror aos doentes. Ele sabe que Pierre, já antes de casar, tinha "aquele encanto nervoso e aquela sutileza que tanto haviam agradado Eve quando a namorava, e que eram fIores da loucura". Ele não pode admitir que sua filha amasse o doente mental. "Não é verdade – você não o ama, não pode amá-lo. Não se podem ter tais sentimentos senão por um ser normal e são".

Eve recusa internar seu esposo, quer continuar ao lado dele, mas ela nota que ele não tem necessidade dela. "Os normais ainda crêem que eu também sou normal. Mas não poderia permanecer uma hora no meio deles. Tenho necessidade de viver do outro lado do muro. Lá, porém, não me querem mais". Ela não tem esperanças de cura para Pierre. O médico já lhe disse que ele vai deslizar na demência. Apenas pensa "Eu o matarei antes que aconteça".

O caso que Sartre retrata poderia ser perfeitamente verídico. Poderia servir como ilustração para um estudante da psiquiatria. E quanto às reações do ambiente, os sentimentos do sogro, da esposa, sem dúvida Sartre, como filósofo existencialista, escreve muito mais do que achamos em qualquer livro da especialidade.

V. Conclusão

"Para que serve a Filosofia?"

Pensamos que ela está ao nosso alcance para amplificarmos nossa consciência, e melhor situarmo-nos, como ser humano que somos, em nossa finita existência (o que não é pouco!).  Constatamos que muito nos distanciamos de nosso núcleo instintivo, que tem por função cuidar da sobrevivência. Seja do ponto de vista orgânico, sinalizando-nos necessidades, como água e nutrientes, por meio da sede e da fome, ou, levando-nos a um padrão de comportamento de ataque e defesa, como quando nos deparamos com um predador de calibre 38 na mão. Entretanto, com o processo de aculturação civilizatória, foi-se perdendo este contato mais profundo conosco mesmos. Almoçamos porque é meio-dia. Jantamos porque são dezenove horas. Fazemos amor entre seis e seis e quinze da manhã, porque temos de enfrentar um demorado trânsito. Por outro lado, desenvolvemos uma liberdade tal em relação aos instintos, que esquecemos, que os demais animais não-humanos, ao longo da Evolução, só matam por algum motivo instintivo-adaptativo muito forte, seja para comer, defender um território no qual o macho deixou sua fêmea e a prole, e por aí vai. Também não cometem suicídio, apesar das lendas que existem. Enfim, se eles ainda estão atrelados aos comandos do instinto, por outro lado, não desenvolveram a crueldade gratuita e assassina dos humanos.

Ganhamos uma razão com o upgrade de uma consciência plena, crítica e reflexiva. Conhecemos a limitação da nossa impermanência, que deveria nos trazer de quebra, humildade, compaixão e tolerância para com os demais. Aprendemos a filosofar, ordenando criticamente nossas idéias, palavras e ações no meio ambiente. Mas, somos perversamente vulneráveis à nossa imensa vontade de poder. Poder de comando, poder econômico, poder das armas, poder pelo poder. Chegamos a pensar que é devido a esta onipotência insaciável, que acabamos por destruir, e ser destruídos por, aquilo que nos é mais caro: nossos valores.

A civilização não deixou o homem mais feliz. Os poderes não deixaram o homem mais feliz. O desenvolvimento científico e tecnológico, aumentando nossas expectativas de vida, curando doenças que eram fatais, encurtando as distâncias que são hoje medidas em tempo, informatizando a notícia e o conhecimento, e por aí vai, não tornaram o homem mais feliz. Se definirmos maturidade como a capacidade que desenvolvemos em tolerar frustrações, seguramente, as nações mais ricas estão no limite da tolerância zero, neste sentido. Um súdito é frustrado, porém, o imperador também o é. Muitos são os fatores a alimentar nossa agressividade individual.

Surge o inevitável fenômeno do bode expiatório, contra quem descarregamos nossa agressão pessoal. Se levarmos isto à proporção de uma nação inteira, há que se arranjar uma outra nação a expiar. É mais cômodo brigar com quem está mais próximo: o vizinho. Em diplomacia o Uruguai é conhecido como "país tampão", que nos isola de uma fronteira direta com a Argentina. Se um dia o Uruguai sumisse em um tsunami, no dia seguinte estaríamos em guerra declarada contra os argentinos. Motivos? Não precisamos. Ou, arranjam-se. Parece-nos que a guerra é a via final comum da somatória das ações humanas frustradas, levando a uma sede de poder enlouquecedora.

Solenemente propomos a alguma Comissão de Sistemática Zooantropológica a criação da nova espécie Homo bellicus, que assassinou, por motivo fútil, a antiga sapiens. Aldous Huxley dava soma aos seus personagens para suportarem aquele novo mundo. Nós tomamos tudo aquilo que for mais eficiente para alterar nosso estado de consciência. Mas, "inútil dormir, porque a dor não passa". Não que sigamos alguma seita gnóstica apocalíptica repleta de belzebus. Porém, é de fácil constatação que a humanidade caminha por um projeto suicida consistente. Integramos uma linha de (des)montagem de nós mesmos. Perdemos a noção das perspectivas. Diante de nós passa a esteira, não mais com parafusos e porcas, à frente de Chaplin fazendo reaperto com chaves-de-boca, mas, com fígados, intestinos, cérebros, sonhos, devaneios, esperanças, dirigindo-se maquinalmente para uma grande trituradora transformando tudo em não-ser.

A Filosofia não faz link com a pseudo-literatura de auto-ajuda, tão prosaica quanto inútil. Se os considerados progressos não trouxeram em sua esteira a propalada felicidade ao ser humano, a questão a se desvelar será: Quais os valores éticos que realmente podem nos conduzir a um maior bem-estar? Quais os valores que tornam a nossa finitude existencial capaz de ter algum significado? Qual o valor de nossa própria vida? Quais os valores que poderão sustentar uma vida de conforto interno para nós? E por aí vai.

Cabe a nós, que filosofamos profissionalmente, buscar constatações, questionamentos e reflexões, sempre no esforço de atingir um razoável metaconhecimento. Acima de tudo, elaborando as perguntas mais precisas. A você, prezado leitor, cabe encontrar com autonomia, as suas respostas. A Religião, no uso da sua boa fé, garante-lhe uma vida após a morte. A Filosofia interroga-lhe se isso que você está levando é Vida, e lhe mostra um norte antes da putrefação da morte. A Ciência e a Tecnologia nos dão mapas, a Filosofia, bússola.


Bibliografia

Principais obras de Jean-Paul Sartre

SARTRE, J.P. L' Imagination. Paris: P.U.F., 1963. Ed. bras.: A Imaginação. São Paulo: Difusão Européia do Livro.

____. La Nausée. Paris: Gallimard, 1938. Ed. port.: A náusea. Lisboa: Publicações Europa- América, 3ªed., 1964.

____. Le mur  (ed. bras.: O muro. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1966), a que se seguiram, La Chambre, Érostrate, Intimité, L'Enfance d'un chef. Paris: Gallimard, 1939.

____. L'Imaginaire. Psychophénoménologie de l'imagination. Paris: Gallimard, 1939. Ed. bras.: A imaginação. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

____. Esquisse d'une théorie des émotions. Paris: Harmann, 1940.

____. Les mouches, peça em três atos. Paris: Gallimard, 1943.

____. L' Être et le Néant. Paris: Gallimard, 1943.

____. Les Chemins de la liberté  I. L' Age de raison (ed. bras.: A Idade da Razão. São Paulo: Difusão Européia do Livro). II. Le Sursis (ed. bras.: Sursis. São Paulo: Difusão Européia do Livro). Paris: Gallimard, 1945. III. La mort dans l' âme. 1949 (ed. bras.: Com a morte na alma. São Paulo: Difusão Européia do Livro).

____. Huis Clos (Entre quatro paredes), peça em um ato. Paris: Gallimard, 1945.

____. L'Existentialisme est un humanisme. Paris: Nagel, 1946. Ed. bras.: O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

____. Morts sans sépulture, peça em três atos. Paris: Marguerat, 1946.

____. La  putain respectueuse, peça em dois quadros. Paris: Nagel, 1946.

____. Réflections sur la question juive. Paris: Gallimard, 1946. Ed. bras.: Reflexões sobre o racismo. São Paulo: Difusão Européia do Livro.

____. Baudelaire. Paris: Gallimard, 1947.

____. Les Jeux sont jaits (roteiro do filme). Paris: Nagel. 1947.

____. Situations I. Paris: Gallimard, 1947; Il-IV, 1948-1964.

____. L'Engrenage. Paris: Nagel, 1948.

____. Les mains sales, peça em sete quadros. Paris: Gallimard, 1948.

____. Entretiens sur Ia politique (com D. Rousset e G. Rosenthal). Paris: Gallimard, 1949.

____. Le Diable et le bon Dieu, peça em três atos e onze quadros. Paris: Gallimard, 1951. Ed. bras.: O Diabo e o bom Deus. São Paulo: Difusão Européia do Livro.

____. Saint Genet, comédien et martyr (v. I das Obras Completas de Jean Genet). Paris: Gallimard, 1952.

____. Critique de Ia raison dialectique. Paris: Gallimard, 1960.

____. Les mots. Paris: Gallimard, 1964. Trad. bras.: As Palavras. São Paulo: Difusão Européia do Livro.

Sobre a obra de Sartre

LAING, R.D. & COOPER, D.G. Reason and violence: A decade of Sartre's Philosophy. Londres: Tavistock, 1964. Ed. bras.: Razão e violência. Petrópolis: Vozes, 2ªed., 1982.

                             

Principais livros de Albert Camus

CAMUS, A. L'étranger. Paris: Gallimard, 1942. Ed. bras.: O estrangeiro. São Paulo: Record, s/d.

____. La peste. Paris: Gallimard, 1947. Ed. bras.: A peste. Rio de Janeiro: Record, s/d.

____. Le Mythe de Sisyphe. Paris: Gallimard, 1942. Ed. port.: O Mito de Sísifo. Ensaio sobre o absurdo. Lisboa: Ed. "Livros do Brasil", s/d.

____. Notebooks (Carnets). Nova Iorque: Modern Library, 1965.

____. Hachette. Paris, 1964

____. Carnets (mai 1935-février 1942). Paris: Gallimard, 1962.

____. Carnets (janvier 1942-mars 1951). Paris: Gallimard, 1964.

____. Essais. Bibliothéque de Ia Plêiade. Paris: Gallimard, 1965.

____. Théâtre, Récits; Nouvelles. Biblio­théque de Ia Pléiade. Paris: Gallimard, 1962.

(*) Este artigo é uma sinopse do livro do A, "ANÁLISE DA EXISTÊNCIA
EM  TEMPOS  DE  GUERRA"
. Da compreensão fenomenológica à interpretação analítica; prefaciado por   Bento Prado Jr.

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