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Revisão. Alterações da Cognição: (b) Memória – parte II

(continuação)

Alucinações mnêmicas

Sully deu a denominação de alucinações da me­mória às criações imaginativas com aparência de reminiscências, que não correspondem a nenhuma imagem de épocas passa­das. Nos esquizofrênicos surgem, freqüentemente, algumas produções psí­quicas com características de lembranças reais que podem modificar de mo­do completo o passado do enfermo. Bleuler assinala que "as alucinações da memória se apresentam com freqüência nos esquizofrênicos, nos quais po­dem surgir de modo repentino lembranças que não correspondem a nenhum acontecimento".

Como exemplo de alucinações mnêmicas, cita este caso: "Um paciente começou a reclamar dizendo que na noite anterior foi levado ao alto da torre da Catedral e o fizeram realizar toda sorte de perigosos movimentos ginásti­cos e, em seguida, lançaram-no ao rio. Nos dias seguintes continuou a histó­ria, que se complicou ainda mais, aparentemente com certo plano. Conta, por último, que deu a volta ao mundo voando (isto aconteceu antes de o avião se tornar um meio próprio de locomoção)."

Analisando este exemplo de alucinação da memória, Bleuler diz que "aqui não se trata de realização de sonhos nem tampouco de alucinação dos senti­dos, pois muitos dos acontecimentos eram situados no tempo em que o indi­víduo normalmente se ocupava do seu trabalho. Em outros casos, as alucina­ções da memória são menos sistematizadas e constam apenas de particularidades isoladas".

Bleuler admite que os senis possam apresentar também alucinações mnê­micas. Cita o exemplo de um dos seus enfermos que, com freqüência, dizia ter sido atacado na noite anterior por ladrões, que lhe haviam amarrado um braço à espádua.

Fabulações

O fenômeno descrito anteriormente difere, na realidade, em sua essência, da fabulação, transtorno qualitativo da memó­ria que se observa com freqüência nos esquizofrênicos paranóides, nos orgâ­nicos e nos alcoolistas com síndrome de Korsakov.

Consistem no relato de coisas fantáticas que, na realidade, nunca aconte­ceram. Em grande parte, resultam de uma alteração da fixação e de uma inca­pacidade para reconhecer como falsas as imagens produzidas pela fantasia. O conteúdo das fabulações, como bem salientou Lange, procede do curso ha­bitual da vida anterior, acontecendo muitas vezes que, achando-se perturbada a capacidade de localizá-Ias no tempo, lembranças isoladas autênticas com­pletam erroneamente as lacunas da memória. Nos casos em que existem alte­rações dos conceitos e desorganização das tendências vitais, pode-se obser­var a produção rica de conteúdos fabulatórios absurdos e inverossímeis, que, habitualmente, adquirem um aspecto oniróide. Em outros casos, certas ima­gens oníricas são rememoradas e atualizadas como lembranças autênticas.

Bleuler procurou deixar bem clara a distinção entre fabulação e alucina­ção mnêmica quando escreveu: "Na fabulação trata-se de uma invenção li­vre que se toma por acontecimentos vividos. As fabulações preenchem um vazio da memória e se mostram como que criadas para este fim. Podemos produzi-Ias ou governá-Ias, enquanto que as alucinações da memória não mudam, tal como a idéia delirante. Pergunta-se a um alcoolista com síndro­me de Korsakov onde esteve no dia anterior. Sem pensar, nos conta com gran­de exatidão que esteve a passear na montanha próxima."

No sentido mais particular, a fabulação é, nos estados em que não há delírio, um sintoma de transtorno mental orgânico. "Os que mais fabulam" – diz Bleuler – "são os alcoólicos com síndrome de Korsakov; às vezes, toda a sua atividade psíquica consiste em fabular". Papel mais modesto desempenham as fabulações nos senis; porém, não obstante, é fácil produ­zir o sintoma perguntando o que fizeram na noite anterior (fabulação de embaraço).

Fenômeno do já visto

Consiste no fato de o indivíduo ter a impressão de que a vivência atual já foi experimentada no passa­do. Bumke assim o conceitua: "Em uma situação qualquer se nos apresenta, de súbito, a idéia de havê-Ia vivido anteriormente. Isso acontece especialmente quando a consciência se encontra ligeiramente ofuscada. Muitas pessoas sãs conhecem esse fenômeno." Aparece normalmente nos estados de fadiga. "Um esquizofrênico conhecido meu – diz Bleuler – acreditou durante muito tempo que tudo (o que lhe acontecia) já lhe havia ocorrido antes, há anos, exatamente como na atualidade." Nos epiléticos com focos temporais, o fenômeno se apresenta com características especiais, principalmente como crises, e tem um grande valor do ponto de vista da localização da lesão. Pode-­se observar o fenômeno oposto, o jamais visto, também com caráter aces­sual, no qual o enfermo está incapacitado de reconhecer o ambiente por mais familiar que este o seja na realidade.

Exemplo – "Um homem instruído e que raciocinava muito bem sobre a sua doença, da qual chegou mesmo a fazer uma descrição escrita, surge aos 32 anos com uma afecção mental especial. Se assistia a uma festa, se visita­va qualquer lugar, se encontrava alguém, este acontecimento, com todas as suas circunstâncias, parecia-lhe também familiar, e ficava certo de já ter sen­tido as mesmas impressões, estando rodeado precisamente dos mesmos ob­jetos, com o mesmo céu, o mesmo tempo. Se fazia algum trabalho novo, pa­recia-lhe já tê-Io feito e nas mesmas condições. Às vezes este sentimento pro­duzia-se no mesmo dia ao fim de alguns minutos ou de algumas horas, às ve­zes, somente no dia seguinte, mas com uma perfeita clareza" (A. Pick).

Criptomnésia

É um falseamento da memória em virtude do qual as lem­branças perdem suas qualidades e aparecem ao paciente co­mo fatos novos. O termo foi criado por Bleuler, que o conceitua do modo se­guinte: "Há sábios que primeiramente repudiam uma idéia nova, depois elaboram-na consciente ou inconscientemente e por fim aceitam-na, esque­cidos porém de que eles mesmos a haviam recusado e até se convencem de que é coisa absolutamente nova que Ihes ocorreu. Os senis em sua conver­sação podem contar uma história como nova, quando a mesma, poucos mi­nutos antes, entre as mesmas pessoas foi relatada por outro". Esse fenôme­no pode constituir a origem de disputas quanto à prioridade de uma idéia ou de uma descoberta e tem sido motivo de muitas acusações de plágio.

Ecmnésia

Consiste na revivescência muito intensa, às vezes de duração breve, de lembranças anteriores que pareciam esquecidas. Es­te transtorno qualitativo da memória foi descrito por Pitres que o considerou como fenômeno de reversão mental, observado em enfermos histéricos e em pessoas submetidas à hipnose. Esses indivíduos podem perder a identidade atual e vivem as cenas evocadas como se estivessem recolocados na época de sua existência em que elas sucederam.

Exemplo de ecmnésia – "Trata-se de um paciente com 25 anos de ida­de que, durante as crises que se caracterizavam por se sentir caindo, 'como se fosse em uma rosca sem fim', vivenciava novamente um acontecimento passado de grande valor afetivo. Encontrava-se no Aeroporto de Brasília e, ao descer a escada rolante viu, lá embaixo, a sua noiva em companhia de um homem. Este fato vivido realmente, se reproduzia em todas as particula­ridades sempre que o enfermo entrava em crise. Esclareceu o paciente que não se tratava de uma lembrança, mas tudo acontecia como se estivesse pre­senciando e participando novamente da cena. A experiência se acompanha­va de grande emoção" (Cesar Almeida Lira).

Valor semiológico
Pode-se afirmar que a memória se apresenta alterada em todos os trans­tornos mentais. Entretanto, em determinados quadros clínicos, tais alterações representam o sintoma mais significativo, constituindo por si mesmas o ele­mento mais importante para o diagnóstico.

Síndrome de Korsakov

O quadro sintomatológico se caracteriza por uma alteração grave da fixação. Aqui se observa em sua pureza aquilo que Bumke denominou "complexo sintomático amnéstico". O sintoma principal e característico é a desordem da fixação, ao lado de alte­rações da atenção e da orientação. O paciente não guarda nenhuma lembrança do período da enfermidade. Freqüentemente, a alteração da memória se es­tende a um período anterior, alcançando alguns dias ou poucas semanas an­tes da instalação da doença. A extensão e a intensidade da amnésia são va­riáveis, existindo casos em que são esquecidos anos inteiros de experiência. "Se a amnésia continua estendendo-se de diante para trás" – escreve Bum­ke – "podem os pacientes chegar a crer que vivem em uma época anterior e comportar-se de acordo com esta crença errônea. De qualquer forma, quando há remissão, a memória volta de um modo retrógrado. Nos casos típicos de síndrome de Korsakov nunca se observa um enfraquecimento da memória que se estende até as lembranças infantis." Nesta enfermidade se verificam com freqüência fabulações.

Exemplo – "V. História de cefaléias e ausências durante um ano e meio. Crise comicial em junho de 1957, o que determinou a sua hospitalização. Foi evidenciada a existência de uma síndrome de Korsakov com amnésia pa­ra os fatos recentes, fabulação induzida e euforia. Os exames complemen­tares revelaram uma dilatação considerável dos ventrículos laterais e obstru­ção parcial do terceiro ventrículo sem imagem característica. Em junho de 1957, derivação pelo método de Torkildsen. Dois meses mais tarde, confusão mental mascarando a síndrome de Korsakov, e aparecimento de sinais extrapiramidais. Em outubro de 1957, intervenção direta pela via transfrontal sobre o terceiro ventrículo, por se ter a certeza de tratar-se de um tumor benigno: seção do for­nix direito e descoberta de um quisto colóide aderido à borda superior do bura­co de Monro. Histologia, quisto colóide. Em seguida à intervenção, desapareci­mento dos sinais extrapiramidais e do estado confusional, reaparição da sín­drome de Korsakov, muito típica e acompanhada de fabulação rica e espontâ­nea; algumas manifestações de agressividade, que poderiam estar ligadas a fases de onirismo. Estado estável, considerado como crônico.

"Amnesia dos fatos recentes é bastante acentuada: o enfermo admite que tem 15 ou 25 anos e acredita que se encontra em período escolar, em uma instituição religiosa. Refere que se casou há 15 anos com uma prima alemã, mas logo perde as suas lembranças e chega a negar o seu casamento, não reconhece a sua mulher e não consegue adotar uma atitude intermediária, como no exemplo seguinte. 'Você é casado?' Resposta: 'Eu não era casado nessa época, quando tive esse encontro. Esse encontro remonta a um ano e meio apenas, apenas um ano e meio. Eu não era casado. Ah! certamente eu não era casado, e, no entanto eu sou. Eu encontrei uma jovem que era minha prima, seguramente minha prima, não uma prima à moda da Bretanha, nem uma prima alemã, nem descendente de alemães, nem tudo isso que o senhor pensa. Não, não, não, mas uma jovem propriamente minha prima, e esta jovem, durante uma entrevista, pronunciamos as palavras que consti­tuem um casamento e nós as pronunciamos diante do microfone'.

"Respondeu que o presidente da República é Vicente Auriol e que a guerra terminou em 1940 ou 1948.

"Os fatos antigos estão preservados, o enfermo sabe ter passado a sua infância na Bretanha, em Pertre, onde nasceu e freqüentou a escola, com di­versos professores, como Guillopet. Sabe que fez o serviço militar em Ren­nes, na infantaria, mas é incapaz de mencionar o nome de um dos seus ofi­ciais ou suboficiais" (Delay).

Transtornos mentais orgânicos

Nas perturbações mentais orgânicas verifica-se al­teração da fixação e da evocação. A alteração da fi­xação é observada desde o início da enfermidade, evoluindo progressivamente até alcançar, em alguns doentes, uma completa incapacidade para fixar os acontecimentos novos. Em certos casos, os fatos recentes são recordados, mas com a tendência a serem logo esquecidos, em virtude da debilidade dos traços deixados pela excitação.

Na demência senil, especialmente, a evocação se mostra deficiente, e os enfermos revelam uma tendência progressiva a utilizarem cada vez me­nos os seus conhecimentos. Observa-se, nesses casos, a perda da capacida­de de evocação, que se processa dos acontecimentos mais recentes para os mais antigos.

Exemplo – "N.G. solteiro, 64 anos de idade, funcionário da estrada de ferro, aposentado, internado no Sanatório devido a alterações do com­portamento. Sempre se destacou por suas atitudes corretas, cumpridor dos seus deveres profissionais e sociais, bom administrador dos seus bens. Man­tinha relações íntimas com uma viúva jovem que o explorava. Antes de sua internação o encontramos em um Café, no centro da cidade, quando fazia uma pequena refeição. Na ocasião encontrava-se com as vestes descuida­das, comia com voracidade, estava com as mãos sujas de gordura, deixava os alimentos caírem pelos cantos da boca e cuspia as migalhas. No dia se­guinte o visitamos em sua residência; veio abrir a porta de cuecas e camise­ta, indumentária que conservou durante a visita, sem fazer menção de trocá­Ia. Pedimos desculpas pelo fato de molestá-Io às sete horas da noite, por su­por que se encontrasse dormindo e respondeu que 'já estava se vestindo pa­ra ir ao Banco retirar as rendas' e, ao chamar a sua atenção para o fato de estarmos em dia feriado, respondeu que era verdade, sem outra explicação. A habitação em que vivia solitário se encontrava na maior desordem: a roupa branca atirada em cima dos móveis e no chão, as mesas cheias de objetos inúteis; em um cômodo contíguo, pequena oficina de carpinteiro, na qual exis­tia grande quantidade de pequenos pedaços de madeira, que nos mostrou com muita satisfação. Convidado para conhecer os cômodos da casa, perguntamos-lhe as razões da desordem reinante, o que respondeu com es­tranheza: 'Não, homem, está muito bem arrumada e limpa', ao tempo em que recolhia as roupas que ia encontrando e fazendo com as mesmas uma trou­xa, que atirou para cima da mesa. Repetidamente nos convidou a ir à varan­da para admirar a paisagem que dali se divisa (vive em uma rua estreita), e ali permaneceu com a reduzida indumentária com a qual nos havia recebido. Ao chamar a sua atenção para a particularidade de que os vizinhos o olhavam com curiosidade, não emprestou nenhuma significação ao fato. Deixou-se con­duzir ao Sanatório sem resistência, acreditando que ia passar alguns dias no campo. No ato da internação, aceitou tudo sem protesto e sem suspeitar do que se tratava, encontrando-se muito satisfeito porque 'durante alguns dias pretendia oxigenar-se', sem perceber o tipo de instituição onde se encontra­va nem a espécie de enfermos que o rodeavam.

"Amnésia global: não se recorda da marca do seu automóvel, do preço que pagou pelo mesmo nem da Agência onde o adquiriu. Ao tempo em que informa ter o mesmo custado determinado preço, refere-se a uma soma mui­to inferior. Diz que o motorista não cobrou nada durante os três meses que trabalhou para ele e ao mostrar-lhe a impossibilidade de que o mesmo traba­lhasse gratuitamente, respondeu. 'Não me cobra porque é muito simpático e deve viver de suas rendas'; 'vem buscar-me quando o chamo', sem que seja capaz de explicar as horas em que utiliza o carro, nem para que fins o utiliza. Não se recorda da renda da casa de sua propriedade, nem quanto pa­ga de impostos, nem o número de cômodos da mesma. Não tem a menor lem­brança da época em que adquiriu a casa e de quanto ela custou. Esqueceu a data e a cidade em que travou conhecimento com a sua amiga, com a qual mantém relações há alguns anos, sem que possa precisar se cinco ou vinte. O falseamento das lembranças é muito acentuado, e entre outras coisas diz que já esteve várias vezes no Sanatório e que agora já se encontra aqui há três meses. Os testes de memória de fixação revelaram que não pode repetir mais do que três dígitos, e fracassou na prova dos pares. Foi incapaz de reali­zar as provas de cálculo" (Nágera).

Deficiência mental

Os diferentes graus de deficiência mental se acompa­nham de alterações da fixação e da evocação. Em mui­tos casos, a desigualdade no desenvolvimento da memória revela que, em­bora se trate de deficientes de grau moderado, os indivíduos mostram uma excelente capacidade para a reprodução mecânica de certas especializações: conhecimentos musicais, matemáticos ou impressões visuais.

Epilepsia

 

Os epiléticos estão sujeitos à apresentação de alguns transtor­nos da memória, que merecem atenção especial. Quase sempre a memória é insegura, principalmente em sua capacidade de evocação e na localização das lembranças. À medida que a enfermidade progride no tempo, a fixação vai-se tornando cada vez mais difícil. Com muita freqüência, alguns enfermos apresentam esquecimentos de nomes, de datas, de acontecimen­tos da vida cotidiana, enquanto conservam de modo perfeito os conhecimen­tos adquiridos anteriormente. Na opinião de H. Mignot, estas alterações não têm uma relação direta com a freqüência dos acessos convulsivos, visto que são observadas também nos doentes em que as crises estão controladas pe­lo tratamento. Considera o autor citado que estes fenômenos dependem de paroxismos infraclínicos. "Sabe-se, com efeito, que o EEG mostra com fre­qüência um traçado elétrico típico de ausência ou de crise parcial infraclínica, enquanto o paciente não apresenta clinicamente nenhuma manifestação pa­roxísmica. É provável que essas ausências infraclínicas ocorram simultanea­mente com uma alteração da atenção e da concentração intelectual, e a maior parte dos epileptólogos interpreta esses fenômenos como manifestações pas­sageiras de um déficit da função da vigilância cerebral" (Mignot).

A supressão súbita da consciência no momento da crise convulsiva tem como resultado a falta de lembranças do que ocorre durante a mesma. As lembranças mal delimitadas constituem bom sinal de obnubilação da cons­ciência nos estados crepusculares. Com a evolução da doença aumenta gra­dativamente a alteração da memória, revelada pela perda dos conhecimen­tos adquiridos, pelo estreitamento do círculo de interesses e o empobrecimento dos meios de expressão.

De modo geral, os enfermos epiléticos apresentam amnésia lacunar, li­mitada aos períodos das crises convulsivas.

Exemplo – "Benedito, de cor branca, com 45 anos de idade, casado, médico. A enfermidade teve início aos 15 anos, com acessos vertiginosos e ausências cada vez mais freqüentes. Exerceu a profissão durante pouco tempo, acusando o pai pelo seu fracasso profissional, pois este o reteve ao seu lado para ajudá-Io no comércio hoteleiro. Na primeira semana do seu ingresso na clínica, manifestou um acesso agudo de excitação, com obnubilação da cons­ciência, durante o qual apresentou repetidos acessos comiciais. Desapareci­da a excitação, restou um estado estuporoso. Passada esta última fase, guar­dava uma lembrança muito vaga do ocorrido. Atualmente, sofre crises con­vulsivas espaçadas de quatro ou de cinco em cinco dias. Movimentos torpes e lentos, expressão fisionômica de embrutecimento. Abordável, lúcido, regu­larmente orientado. O seu interesse imediato consiste em receber alta da clí­nica. Revelou prolixidade e perseveração com notória debilidade do juízo. A memória de fixação mostra-se enfraquecida. Amnésia lacunar completa do episódio descrito. Linguagem pobre, lenta, monótona. O curso do pensamento revela lentidão, com pobreza de conteúdo. Apático e sem espontaneidade" (Denis Ferraz).

Como tipos de acessos psíquicos, pode-se observar a reminiscência sú­bita e fugitiva de um acontecimento anterior e o fenômeno do já visto, assi­nalado por Binswanger.

Esquizofrenia

A memória em sentido estrito, compreendida como a apti­dão para conservar lembranças, isto é, a faculdade de con­servar conhecimentos adquiridos, não está perturbada na esquizofrenia. En­tretanto, a fixação e a capacidade de evocação se acham profundamente al­teradas, em parte devido à falta de atenção e de interesse. Nas formas para­nóides, observam-se ilusões mnêmicas e alucinações mnêmicas. Hoche sa­lienta que "a falsificação da memória tem na demência paranóide uma ori­gem psíquica de todo diferente dos fenômenos aparentemente análogos que se encontram em outras afecções mentais, como, por exemplo, o colorido depressivo que é conferido nos estados melancólicos a toda a vida passa­da". E mais adiante escreve: "Na esquizofrenia paranóide se tem a impres­são de que os doentes perderam a capacidade de distinguir a coisa vivida da que é imaginada ou imaginável; incapacidade que se funda provavelmente sobre o extravio do senso da realidade, de modo que um fato qualquer que tenha sido objeto de sua atividade ideativa, na forma, por exemplo, de jogo da fantasia, de reverie, de leitura, de conversa, pode vir reproduzido como fato vivido."

Síndrome maníaca

No curso dos estados maníacos a evocação está, or­dinariamente, exaltada: à menor impressão sensorial, uma representação que surge casualmente na consciência tende a reviver uma sucessão ininterrupta de idéias e de imagens. As ligações entre as idéias é débil, fragmentária. As combinações dos conceitos e dos juízos se fazem de maneira acidental, estabelecendo-se na maioria das vezes relações secundá­rias, devidas a assonâncias, rimas, jogo de palavras. As idéias se sucedem sem direção, ao acaso das circunstâncias psicológicas. As lembranças afluem à consciência em sucessão que pode remontar à infância. Com freqüência, as suas aquisições escolares ressuscitam: eles podem então recitar longos trechos de autores clássicos, relembrar com precisão as datas históricas. O pensamento é móvel, instável, salta sem transição de uma idéia a outra, as evocações se fazem ao acaso: todos os atos intencionais estão nivelados, tem igual interesse e se atualizam com o mesmo grau de consciência. Mundo exterior, impressões sensoriais, imagens verbais motoras, tudo se encontra sob o mesmo plano, tudo é vivido com igual intensidade. O colorido emocio­nal dos estados de consciência não se acha inibido por uma direção; sem fi­nalidade, inteiramente livres, eles têm a mesma importância e o seu matiz afetivo se manifesta com a mesma intensidade. O automatismo, nos estados maníacos, não é apenas intelectual, mas afetivo; as tendências habitualmen­te reprimidas tendem a se realizar, sua liberação favorece a emotividade; per­cepções ou representações, emoções, mímica e movimentos se associam sem freio; a expansividade é a nota dominante. Os estados afetivos comandam em parte o encadeamento; eles tendem a evocar as representações e a pro­vocar os juízos que se expressam na linguagem: o humor alegre, por exem­plo, incita os trocadilhos, os jogos de palavras, gracejos impertinentes, o re­torno de lembranças agradáveis varia segundo o seu caráter, suscita pensa­mentos otimistas, projetos sem uma ordenação adequada. Os estados afeti­vos não obedecem à representação que Ihes serve de incentivo ou mesmo de símbolo. À medida que a excitação maníaca aumenta de intensidade, a hiperevocação automática cresce de modo progressivo.

A imaginação também está exaltada, observando-se as combinações as mais singulares e as criações as mais fantásticas. A evocação automática, por mais rica e fiel que seja, não serve mais para nada, o doente não a contro­la, não escolhe nada entre as evocações tumultuosas; as representações in­coerentes não podem mais dirigir a atividade no sentido de uma via razoável e prática, e é inutilmente que se revivem os estados de consciência anterio­res. A atividade psíquica está reduzida exclusivamente aos expedientes e ao acaso do automatismo. Passado o estado de excitação, pode-se verificar que os elementos que pareciam fixados não o estão ou o foram de maneira in­completa e superficialmente. A perturbação da conservação contrasta com a exaltação da evocação. Uma paciente de Deron explicou: "Eu não pensava o que dizia, por isso não posso me lembrar."

Em muitos casos de excitação maníaca observa-se hipermnésia, carac­terizada pela revivescência acentuada de lembranças, que fluem à consciên­cia do enfermo em verdadeira avalanche. Não se trata de um enriquecimento da memória, mas de um verdadeiro "tumulto, uma desordem da memória". Em virtude da excitação em que se encontra o enfermo, o mesmo está inca­pacitado para relembrar os fatos vividos durante a excitação. Em conseqüên­cia, o paciente apresenta uma amnésia total ou parcial relativa à fase de exci­tação maníaca. A vida psíquica está alterada em seu conjunto, tal como acon­tece na embriaguez alcoólica aguda, o que contribui para a manifestação de "fuga de idéias", característica da excitação maníaca.

Estados depressivos

Nos estados depressivos, as funções psíquicas es­tão perturbadas em seu conjunto. Os sintomas mais destacados são a tristeza vital, a angústia e a inibição da psicomotilidade. Entretanto, ao lado desses sintomas axiais, os enfermos deprimidos se quei­xam de um sentimento de impotência psíquica, que os impede de realizar as suas tarefas habituais, diminuição da capacidade de concentração e en­fraquecimento da vontade. A memória se acha comprometida em suas ca­pacidades de fixação e de evocação. Na maioria dos casos, os doentes re­velam redução da atividade voluntária: permanecem quase sempre senta­dos ou deitados, em uma atitude de inércia, com a fisionomia triste, abatida e contraída, revelando uma expressão de profundo sofrimento. Nos casos mais acentuados, a expressão fisionômica reflete tristeza, inquietação e grande ansiedade.

Transtornos neuróticos         

Ao lado dos sintomas principais que dão colorido aos quadros clínicos neuróticos, os enfermos sempre se queixam de "fraqueza" da memória, que dificulta a fixação e a evocação das lembranças. Segundo López Ibor, os enfermos histéricos costumam apresentar amnésias, que obedecem a vários mecanismos. Em alguns doentes, trata-se de guardar segredo a respeito de alguns dados por pudor ou timidez. Nesses casos, não se trata de uma verdadeira amnésia. Em outros, os enfermos não conseguem relembrar certos fatos, embora revelem desejo de relembrá-Ios. Considera essas lacunas da memória como devidas a mecanismos inconscien­tes e podem estar associadas a ilusões da memória ou a fabulações, que preen­chem essas lacunas. Porém, a perturbação mais comum na memória dos his­téricos refere-se à ordem cronológica das lembranças. Diz a esse respeito: "Surpreende a facilidade com que, mediante pequenas manobras sugestivas, conseguem recordar dados que pareciam definitivamente perdidos. Por to­dos esses caracteres, as amnésias histéricas dificilmente se confundem com as orgânicas, que mostram sempre um caráter mais delimitado e penetrante".

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