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Probabilidades gnoseológicas e ontológicas – parte VII

Os problemas de interpretação serão apresentados mais adiante, mas achamos conveniente propor agora a questão do significado das probabilidades mencionadas.

Podemos reconhecer duas possibilidades para o significado do caráter das probabilidades: gnoseológicas ou ontoló­gicas.

São gnoseológicas se representam a falta de conhecimento que temos do sistema. Nesta interpretação, os observáveis do sistema assumem algum valor preciso, definido com exatidão, mas a teoria não é completa e não pode calcular este valor. O mais que pode fazer é dar uma probabilidade para as propriedades, sendo aquela uma manifestação de nossa ignorância do sistema.

Quando determinamos experimentalmente a distribuição de probabilidades medindo um observável em um grande número de sistemas supostamente idênticos e no mesmo estado, a distribuição dos valores resultantes provém de diferenças no valor que tomam certas va­riáveis ocultas, inobserváveis, que desconhecemos, mas que determinam as diferenças experimentais.

Na in­terpretação ontológica, a distribuição dos valores que toma um observável é manifestação de uma indefinição objetiva do observável nos sistemas. Todos os sis­temas são idênticos e o estado é o mesmo em todos, mas certos observáveis assumem valores difusos por uma indefinição essencial, ontológica, em certos estados do sistema. Fazendo referência à distribuição da posição de uma partícula, a interpretação gnoseológica mantém que a partícula está, sim, em algum lugar, mas não temos forma de saber onde, e a ontológica propõe que a partícula perde, neste es­tado, a qualidade de localização e sua posição se torna di­fusa.

É interessante notar, para finalizar esta discussão, que não existe nenhum critério experimental que permita discernir e decidir entre estas duas interpretações. Portanto, para um positivista rigoroso, a discussão não tem sentido, já que todas suas frases são pseudofrases.

Agora que sabemos que o valor que se pode dar aos observáveis nem sempre é um número preciso, passemos a discutir a segunda característica essencial do fenômeno quântico, a relacionada com a dependência entre os observáveis.

Da observação, análise e estudo dos sistemas clás­sicos – que são, recordemos, os geradores de nossa intuição – surge, que podemos classificar a dependência entre pares de observáveis em três categorias. Para tanto tomemos o exemplo de um sistema clássico composto por uma partícula que se move no espaço tridimen­sional. As coordenadas da partícula serão designadas por X, Y, Z, correspondendo à posição da mesma em três eixos ortogonais. A velocidade da partícula terá componentes ao longo destes eixos designados por Vx, Vy, Vz, que, multiplicados pela massa determinam os componentes do impulso Px, Py, Pz. A partícula possui, além disso, certa energia cinética que é dada por E = m V2/2, onde V2 é o módulo da velocidade ao quadra­do, que se obtém somando os quadrados dos compo­nentes da velocidade. Como função do impulso, a energia cinética é E = P2/ (2m). Os observáveis deste sistema clássico serão então (X, Y, Z, Vx, Vy, Vz, V2, Px, Py, Pz, p2, E,…). A "primeira categoria" se caracteriza por uma dependência total entre observáveis, isto é, depen­dência conceitual e numérica. Por exemplo, a energia cinética e a velocidade estão em dependência total, já que existe uma função que as relaciona. Dado um valor de velocidade, imediatamente fica determinado o valor da energia cinética. De modo similar, a energia cinéti­ca e o impulso, assim como o impulso e a velocidade se acham ligados por uma dependência total.

No outro extre­mo, "segunda categoria", temos os observáveis que são totalmente independentes, como a coordenada X e a coordenada Y. A independência neste caso é concei­tual e numérica já que o valor de uma coordenada po­de variar de qualquer maneira sem perturbar por isso o valor de outra coordenada. As coordenadas são concei­tualmente independentes, porque não existe nenhuma forma de obter uma delas como relação funcional da outra. Entre estes dois casos extremos, estão aqueles nos quais os observáveis podem ter uma dependên­cia conceitual, mas ser numericamente independentes, "terceira categoria".

Um exemplo de dependência parcial é dado pela coordenada X e a velocidade nesta direção, Vx. Ambos observáveis estão relacionados conceitual­mente porque a velocidade se obtém como a variação temporal da posição indicada pela coordenada (em linguagem matemática, a velocidade é a derivada tempo­ral da posição). Contudo, apesar desta relação conceitual, os valores numéricos que pode tomar a velocidade não dependem necessariamente da posição. Em outras palavras, é possível que a partícula se encon­tre em certa posição, mas com diferentes velocidades: qualquer velocidade é possível nesta posição e certa velocidade pode dar-se em qualquer posição. Notemos que a esta categoria pertencem os pares formados pelas coordenadas generalizadas e seus impulsos canônicos correspondentes, já apresentados.

Nos sistemas clássicos, a independência entre os valores ou distribuição de valores mencionada nas duas últimas categorias se dá para todos os possíveis estados do siste­ma. Esta é a diferença essencial com a mecânica quânti­ca, na qual, para certos estados, ditos observáveis deixam de ser independentes, porque a assinalação de uma distribuição de valores a um deles põe condições às possíveis distribuições de valores em outros. Nos casos da terceira categoria esta dependência persiste em todos os estados possíveis, enquanto que, para os da segunda categoria, existem certos estados nos quais os observáveis são independentes, mas também os há onde não o são. Mais adiante veremos que estes estados se chamam não-separáveis com respeito aos observáveis em questão.

A falta de independência entre os observáveis dos sistemas quânticos indica que cada observável já não po­de ser tomado como o foi até agora, totalmente isolado do resto do sistema. Considerar o sistema como suscetível de ser separado em suas partes, é conseqüência de nossa experiência com sistemas clássicos, mas não necessariamen­te possível com os sistemas quânticos. Os observáveis de um sistema quântico estão ligados de certa forma que im­pede sua total independência.

Isto que pode ser estranho para sistemas físicos, não é nenhuma surpresa no ser humano. Todos sabemos como os estados emocionais repercutem em diversos "observáveis" do ser humano. Nossa capacidade de trabalho é alterada por nossas relações conjugais; o humor muda drasticamente o apetite; uma baixa na bolsa de Tóquio pode perfu­rar uma úlcera em Nova Iorque etc.

A diferença entre es­tes sistemas humanos de alta complexidade e os sistemas físicos é que naqueles se conhece, ao menos em princí­pio, uma cadeia causal que "explica" a dependência entre observáveis, enquanto que no sistema físico a dependên­cia se dá sem causa aparente, por uma conectividade essencial na realidade que a mantém unificada em um todo.

A necessidade de considerar o sistema físico em sua tota­lidade, nem sempre separável, se denomina "holismo" (do grego hólos, todo, total). Mas convém ressaltar que este holismo na física responde a argumentos científicos ri­gorosos com base experimental e não deve ser confun­dido com charlatanices pseudo-filosóficas. O holismo da física não fundamenta nenhum misticismo orientalista, nem pode justificar nem explicar pretensos fenômenos pa­rapsíquicos. Surge simplesmente da constatação de que a realidade do sistema quântico (no caso de que seja aceita e não seja declarada algo sem sentido) tem uma ca­racterística inesperada para nossa intuição clássica.

O conceito de dependência entre observáveis se re­presenta no formalismo pelo princípio de incerteza de Heisenberg, o qual já foi mencionado. Voltemos a ele. Consideremos dois ob­serváveis A e B de um sistema quântico que se encontra em certo estado conhecido que, recordemos, está fixado por alguma propriedade.

Neste estado, os dois observáveis estarão caracterizados por seus valores de expectação e e suas respectivas incertezas ∆A e ∆B. A dependência entre os observáveis se manifestará em re­lações entre estas incertezas. Se os observáveis em ques­tão têm uma relação de dependência conceitual e numérica total, por exemplo, energia cinética e veloci­dade, as incertezas ∆A e ∆B estão ligadas firmemente por uma relação funcional similar à qual liga aos observáveis mesmos, e como é esperado, quando uma cresce, cres­ce também a outra.

Tal relação entre as incertezas não é estranha e existem estados nos quais ambas se anulam (por exemplo, nos estados caracterizados por alguma propriedade de A ou de B). No outro extremo, quando os observáveis são conceitual e numericamente indepen­dentes (o caso de duas coordenadas), as incertezas po­dem ser também independentes, no sentido de que, caso se eleja um valor para ∆A, isto não determina o valor de ∆B, que pode tomar qualquer valor selecionando o es­tado adequadamente. O espantoso é que existem con­juntos de estados onde ambas as incertezas ∆A e ∆B são distintas de zero e o produto de ambas é constante, de forma tal que ao variar uma delas a outra varia forçosa­mente; classicamente, se espera que as coordenadas do sistema sejam absolutamente independentes, inclusive para suas incertezas.

No conjunto de estados nos quais estas incertezas se acham ligadas, o sistema físico não é separável com respeito aos observáveis em questão. A não-se­parabilidade adquire grande relevância quando os observáveis correspondem a partes muito distantes do sistema e é um dos temas centrais nas discussões atuais sobre a interpretação da mecânica quântica.

Finalmente, consideremos o terceiro caso, no qual os observáveis têm uma dependência conceitual, mas in­dependência numérica, por exemplo, posição e veloci­dade. Aqui se dá outro fato surpreendente: para todos os es­tados do sistema, o produto das incertezas ∆A x ∆B não pode ser menor que uma constante. Isto significa que ambas as incertezas não podem ser nulas, isto é, que os observáveis respectivos não podem estar determinados com exatidão. Para os observáveis de posição X e de ve­locidade V (ou melhor, impulso P), este é o princípio de incerteza mencionado, que impede uma determinação precisa das duas quantidades em forma simultânea. Formalmente: ∆A x ∆P ≥ ћ. É importante res­saltar a diferença com o caso anterior da não-separabi­lidade. Naquele, se bem que em alguns estados o sistema não é separável, existem estados onde o é. Aqui, pelo contrário, em todos os estados possíveis se apresenta a im­possibilidade de ter ambas as incertezas igual a zero.

Para terminar com este tema veremos que se fosse possível determinar com exatidão simultaneamente a posição e o impulso, então se poderia violar a Lei Fundamen­tal que lhe põe um limite inferior à ação em todo pro­cesso. Tomemos uma partícula que se move em uma di­mensão entre duas posições x1 e x2 com um valor constante de impulso p.

Se ∆X = 0 e ∆P = 0, então podemos considerar estas quantidades como exatas, não dotadas de erro ou incerteza. A ação para este sistema é, como já mencionamos, o produto do impulso pela distância percorrida dividido por dois: p(x2 – x1)/2. Tomando agora x2 como suficientemente próximo de x1, pode­mos tornar a ação tão pequena como o desejemos em violação da Lei que indica que esta deve ser maior que ћ. Este limite seria inalcançável se dotamos à posição de uma incerteza, e a Lei ficaria salva.

Os observáveis dos sistemas quânticos estão ligados de maneira tal que os possíveis conjuntos de valores que podem tomar ficam restringidos, estabelecendo-se rela­ções entre as incertezas associadas. O princípio de in­certeza estabelece que o produto das incertezas na posição e o impulso não é nunca menor que ћ qualquer que seja o estado do sistema. Existem certos esta­dos do sistema nos quais o produto das incertezas de observáveis, classicamente independentes, não se anu­la. Nestes estados, o sistema não é separável com res­peito a estes observáveis.

Assim, vimos os elementos essenciais da teo­ria quântica. Entre eles, que a fixação do estado de um sistema quântico por meio de uma propriedade, ou seja, dando um valor a um observável, somado a que não é po­ssível fixá-lo com todas as coordenadas e impulsos, impõe que as predições tenham caráter probabilístico, sem poder resolver-se a questão de se estas probabilidades são ontológicas e gnoseológicas. Aos observáveis lhes assinalamos valores de expectação e incerteza dependentes do estado no qual se encontra o sistema. A depen­dência dos observáveis entre si se manifesta no pro­duto das incertezas, que nunca podem anular-se para coordenadas e velocidades, e que, em estados não-sepa­ráveis, tampouco se anulam para observáveis que na físi­ca clássica se consideram como totalmente independen­tes. Estes conceitos abstratos se esclarecerão no próximo artigo da RedePsi, onde serão aplicados a alguns sistemas quân­ticos simples.

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